Egito em seu momento

Esta matéria publicada este mês (maio de 2012) na revista National Geographic Brasil conta sobre este momento de transição política no Egito pós-revolução (lembro que pela primeira vez na história do Egito a população teve a oportunidade de realizar uma eleição democrática, embora críticos acreditem que quem ficará no poder será alguém ligado ao regime militar de Mubarak).

 

Homem mostra uma foto de camelos em frente a uma das pirâmides do platô de Gizé, hoje o número de visitas turísticas caiu drasticamente. Foto: Acervo National Geographic. 2012.

 

Confira o texto:

 

Egito em seu momento (Maio de 2012)

Na esteira da Primavera Árabe, esperança e incerteza andam de braços dados.

Por Jeffrey Bartholet

Fonte: NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL

“Ladrões e arruaceiros” é a descrição que nosso motorista de táxi faz das pessoas que veremos no trem de terceira classe que vai de Assuã a Lu xor. EsTa parece ser uma opinião comum no Egito rural depois da revolução:atenção com a segurança e evite o populacho. No portão da estação, um policial carrancudo não quer me deixar passar. “Estrangeiros não podem ir na terceira classe”, brada ele. “É proibido!”

Estou viajando no outono de 2011 com um colega egípcio, Khaled Nagy, que passou mais de 200 dias e noites cobrindo a rebelião no Cairo. Partimos de Abu Simbel, no distante sul do Egito, para a cidade mediterrânea de Alexandria, no norte, com muitas paradas pelo caminho. Nossa ideia é viajar para longe do epicentro da revolução, a praça Tahrir, no Cairo, e ver como as mudanças se manifestam no resto do país.

Após muita argumentação e quatro horas de atraso, conseguimos embarcar em um trem. Pagamos depressa ao cobrador 21 libras egípcias, equivalentes a 3,5 dólares, por duas passagens até Luxor, a mais de três horas de distância.

Nosso vagão tem várias janelas rachadas ou quebradas; muitas foram escancaradas para deixar entrar rajadas de vento. Isso é necessário, pois não há ar condicionado nesses dias ainda quentes de outono, e também porque o fedor dos banheiros permeia os vagões quando falta circulação de ar no interior. A portinhola do painel elétrico abre e fecha de encontro à parede, e a caixa de vidro do extintor de incêndio está estilhaçada. O equipamento parece intacto.

Alguns passageiros, imóveis nos assentos, fixam os olhos cansados em algum ponto invisível lá fora. Alguns batem papo ao celular. Uma mulher com falhas nos dentes, de traje preto comum às camponesas, segura uma caixa de papelão com três galinhas. De vez em quando uma das aves escapa, batendo as asas e cacarejando feito louca.

Homens e meninos percorrem os corredores, vendendo lenços de papel, relógios, carteiras, estojos de costura, cobertores de poliéster, água em garrafas plásticas reutilizadas, sementes de abóbora, nozes, pão, feijão cozido, panfletos religiosos e chá servido de enormes bules de latão. Mando engraxar meu sapato empoeirado por 50 centavos, incluindo uma generosa gorjeta. Um deficiente arrasta-se pelo chão de nádegas, pedindo esmola com a mão erguida. Do outro lado do corredor, um homem de turbante aponta para a vista do Nilo franjado de palmeiras, e pergunta: “Vocês têm um rio tão belo quanto este?”

O trem prossegue sacolejante, e nossos companheiros de viagem vão ficando mais simpáticos conosco. Os passageiros à volta, entre eles um muezim – o responsável pelo chamado à prece – em uma mesquita próximo a Luxor e um rapaz que está prestando serviço militar em Assuã, parecem apreensivos com a revolução. Os acontecimentos de Tahrir estão distantes de seu cotidiano. “No final das contas, o objetivo da vida não é simplesmente estar em segurança?”, pondera o muezim, que viaja com a mulher e dois filhos pequenos. Ele reclama da incerteza financeira que o povo sente e da economia em declínio. Todo mês recebe do governo um salário, mas outros vivem de trabalho em trabalho, alguns ganham míseras 10 libras por dia, ou menos de 2 dólares. O muezim pode estar em melhor situação que outros, mas sua mulher parece muito infeliz. Ela passa boa parte da viagem a olhar inexpressiva pela janela, segurando um lenço de papel sobre o nariz.

“Agora, não existe confiança nem segurança”, diz Momen Hassan, o recruta de 22 anos. Quando peço sua opinião sobre os revolucionários em Tahrir, reflete: “Não sou contra eles, mas também não sou a favor”. Hassan não se surpreende com as malfeitorias do regime anterior; porém, compara a corrupção a uma árvore de raízes profundas: depois de cortada, com o tempo, ela torna a crescer. “Democracia é bom”, arremata ele, “mas não podemos nos apressar. Se afrouxarem as rédeas, as pessoas vão fazer o que bem entenderem. Precisamos de mão firme.”

Essa convicção não é rara nas áreas rurais. Por quase toda parte, ouvimos egípcios se dizerem preocupados com al amn – a segurança. Muitos parecem quase paranoicos com os roubos crescentes, inexistentes no Egito antes da revolução, e com a possibilidade de ruptura da ordem. Um taxista em Luxor comprou uma pistola Beretta, e a mantém debaixo de seu assento, no carro. Alguns egípcios lastimam que contrabandistas estão trazendo armas da fronteira com a Líbia.

À sombra dos faraós

Só a inquietude e a tensão já podem ser suficientes para entravar o país. O turismo é importantíssimo para a economia egípcia, mas os lugares turísticos que visitamos estão quase desertos. No templo de Ramsés, o Grande, em Abu Simbel, os quiosques de suvenir na entrada estão fechados, e as catracas de metal silenciaram. Vigias trajando as tradicionais djelabas fitam o lago Nasser, à espera de peixes ou crocodilos que venham fazer onda na plácida superfície da água.

No interior do templo não há turistas se acotovelando. Nem aroma de perfumes europeus nem queixas do calor ou das agruras nas viagens a esse recanto remoto. Nenhum guia explica por que Ramsés II massacra os hititas em um antigo relevo na parede ou apunhala e pisoteia inimigos líbios em outro. Em tempos normais, até 3 mil estrangeiros visitariam esse local em um dia movimentado. Percorreriam o corredor em fila, flanqueados por oito enormes estátuas do faraó, para chegar ao santuário interno, o santo dos santos, no qual os raios de sol penetram apenas duas vezes por ano. Mas oito meses depois de a revolução egípcia ter deposto o presidente Hosni Mubarak, o número de visitantes despencou para cerca de 150 ao dia. Às 4 da tarde de um sábado, não há nenhum outro turista no complexo. Ninguém mais no interior do templo. Uma andorinha solitária esvoaça entre as colunas.

Ali fora, à sombra de quatro colossais estátuas de Ramsés, Ahmed Saleh me convida a me sentar em um muro e tomar um copo de chá. Saleh é egiptólogo e diretor-geral de Abu Simbel e outros monumentos na região da Núbia, no extremo sul do país, próximo à fronteira sudanesa. “Esse tem sido o problema depois da revolução”, diz ele. “Tudo continua incerto, e os turistas receiam vir aqui e ser atacados.” Comento que muitos egípcios acham que as dificuldades econômicas do momento são uma transição necessária. Veem Mubarak como o “último faraó”, e acreditam que está chegando uma nova era – uma ruptura com mais de 5 mil anos de história.

Saleh, com um sorriso tímido, explica: “Ramsés e Mubarak sabiam usar a propaganda. Ambos eram militares, e ambos fundaram dinastias familiares”. Mas Saleh não tem certeza de que Mubarak, que antes da revolução estava preparando um de seus filhos para sucedê-lo, será o último déspota do Egito. Faraós já foram depostos; mesmo na Antiguidade, Saleh explica, o idoso Pepi II foi derrubado por uma revolta popular, só que o governo dinástico retornou. “A vida política no Egito não mudou o suficiente para dizermos que Mubarak será o último faraó. Estamos às portas da democracia, mas ainda não entramos.”

Saleh enumera razões para o pessimismo: remanescentes do antigo regime e do ex-partido governante ainda permanecem em muitos níveis do poder federal e local. As taxas de analfabetismo são altas no Egito (por volta de 40% entre adultos de 25 a 65 anos). Muitos egípcios veem a revolução apenas como uma oportunidade de se apoderar do que desejam ou de fazer exigências salariais e contratuais. Ao contrário de países do Leste Europeu que se libertaram do comunismo, o Egito não faz parte de nenhuma região mais ampla com tradição democrática. “Os árabes não aceitarão a democracia com facilidade”, diz Saleh, em parte porque ela contraria o poder do pai sobre sua família ou do chefe sobre sua tribo. Se o pai diz: ‘Não brinque’, o filho não brinca. Ele é um ditador. Como mudar a mentalidade dos egípcios em tão pouco tempo?”

Esse argumento da mentalidade estática parece, na melhor das hipóteses, ceticismo. No entanto, muitos o usam, pelo menos no Egito que existe fora de Tahrir. É o discurso de quem, como Saleh, apoia os ideais da revolução, mas permanece cauteloso, e também daqueles que desejam justificar um governo autocrático. Em conjunto, essas dúvidas suscitam questões: o espírito revolucionário é profundo no Egito? Estamos diante de uma revolução com objetivos comuns ou de várias revoluções concorrentes? É possível o país voltar a aceitar um governo despótico, só que menos corrupto que o dos últimos anos de Mubarak e com algumas liberdades superficiais?

Uma visão islamita

Mohammed Nasser, um jovem que conheci em Tahrir em fevereiro de 2011, no auge dos protestos, é salafista; sua seita vê as primeiras gerações dos seguidores do profeta Maomé, os salaf (antepassados), como as representantes de uma era dourada cujo exemplo deve ser seguido. (Os salafistas conseguiram votação bastante alta nas eleições parlamentares de 2011-12 no Egito, conquistando quase 25% das cadeiras.) Nasser usa barba longa e rala, raspa o bigode à moda dos salafistas e tem um olhar meigo. Quando o conheci, fazia pós-graduação, estava desempregado e tinha mulher e um filho recém-nascido. Viajara para o Cairo sem o dinheiro da passagem de volta, e subsistiu por dias à base de pão e tâmaras.

Quando ligo para seu celular meses depois, Nasser me convida a visitá-lo em sua casa no delta do Nilo, próximo a Zagazig. Khaled e eu chegamos ali trazendo sacos com frutas frescas, mas de início Nasser me diz para pôr tudo de volta no carro, pois não poderia aceitar nenhum presente. Depois acaba concordando, e nos leva à sala de seu pequeno apartamento. A mulher de Nasser, que em público usa o niqab, volumoso traje preto com o véu cobrindo toda a cabeça, não sai nem uma vez sequer da cozinha. Em sua casa, ela não vê homens que não sejam seus parentes, e, quando convida mulheres para visitá-la, os homens têm de retirar-se. O cunhado de Nasser, Abdel Halim Gamal Eddin, um professor de inglês barbudo, vem se juntar a nós.

Nasser pergunta se prefiro comer em frente à mesinha de café ou sentado no tapete, como é o costume. Escolho o tapete. A comida é posta diante de nós: carne macia, que separamos do osso com os dedos, arroz, sopa e fatta, um cozido egípcio com caldo de carne, vegetais e pão tostado. Quando Nasser acha que não estou comendo carne o suficiente, passa-me um novo pedaço e insiste para que eu coma mais.

Pergunto se a revolução já teve algum impacto, bom ou mau, sobre a vida dele. Apesar do diploma universitário, Nasser nunca chegou a ter emprego assalariado. Ganha por volta de 500 libras (83 dólares) por mês assentando lajotas. Como tantos egípcios, ele faz parte da vasta economia informal do país, diaristas que dependem da disponibilidade de trabalho a cada momento. Mas Nasser não participou em Tahrir por estar frustrado com suas perspectivas financeiras, conta ele. “Não foi uma revolução dos pobres. Foi uma revolução contra a injustiça.”

Embora os egípcios lamentem a relativa erosão da segurança pública após a revolta, poucos parecem sentir saudade das temidas forças policiais do governo. Seus agentes espionavam todo mundo e tinham celas de tortura. O regime de Mubarak justificava a brutalidade como necessária para vigiar seus inimigos, sobretudo os islamitas. Tendo visto militantes fuzilarem seu predecessor, Anuar Sadat, Mubarak temia que, na ausência de métodos duros, os radicais muçulmanos tentassem tomar o poder.

Gamal Eddin, de 35 anos, conta que passou quatro anos na prisão durante o governo Mubarak, aparentemente por ter pregado que era dever dos muçulmanos libertar a Mesquita Al Aqsa, em Jerusalém. Ele parece respeitado pelos outros homens na sala, talvez por ser professor, talvez porque seus anos na prisão lhe deem prestígio. É sorridente e afável, mesmo quando nos conta a história de sua detenção. Primeiro, as forças de segurança prenderam seu sogro e o mantiveram como refém até que Gamal Eddin se entregasse. Mandaram-no para um calabouço no Cairo, onde ficou vendado e algemado por 38 dias. “As algemas tinham a marca Made in USA”, diz. Depois foi para outras prisões, nas quais ficou até 2010. Nunca foi citado criminalmente.

Agora ele quer um presidente que seja “firme e bondoso”, alguém que aplique com rigor as regras islâmicas, “aos poucos, para conquistar a aceitação do povo”. Quando menciono que uma mulher está entre os que pretendem se candidatar à Presidência, Nasser e Gamal Eddin desaprovam. Ambos garantem que o Islã não permite tal coisa. E o presidente também não poderá ser cristão. Isso acarretaria “muitos problemas” em uma terra de maioria muçulmana, dizem.

As forças de segurança suprimiram há pouco tempo um protesto de cristãos no Cairo. Mais de 20 pessoas foram mortas. Gamal Eddin apressase a ressaltar que o vilarejo deles preserva uma “igreja grande”, e frisa: “Não temos intenção de discriminar”. Quando indago se as tumbas e os templos faraônicos devem ser destruídos, como apregoam alguns radicais, os dois respondem que acatarão as ordens das autoridades religiosas. Quando insisto na pergunta, Gamal Eddin diz que Amr ibn al-As, o comandante militar muçulmano que liderou a conquista do Egito no século 7, deixou intactos os monumentos, e isso parece ser um bom precedente. “A revolução não terminou”, diz Nasser. Mas ele vê progresso. “Antes não havia diálogo sobre o futuro. Agora há.”

Meu colega Khaled, um tipo aventureiro que adora música, companhia feminina e um vinho de vez em quando, admira esses dois islamitas. Elogia o otimismo jovial de Gamal Eddin, apesar de tudo que passou. Os egípcios identificam-se com os fundamentalistas islâmicos, diz Khaled, porque foram “oprimidos por tanto tempo”, e também porque os egípcios tendem a ser socialmente conservadores. Muitos desaprovam a permissividade social dos liberais da vanguarda da revolução. Receiam, diz Khaled, que mudanças políticas possam deixar o Egito “parecido com Paris, e todos nós com jeito de americanos”

Meca da modernidade

Durante grande parte de nossa viagem, Khaled e eu não nos afastamos mais que alguns quilômetros do Nilo, e seguimos por um vale verdejante, ladeado pelo deserto. Sem o rio, na verdade, o país seria uma aridez só. Apenas uns 5% do Egito são terras habitáveis. Fora do vale, tudo é inóspito e crestado pelo sol: a “terra vermelha”, como a chamavam os egípcios antigos.

As cidades e os vilarejos ao longo do Nilo parecem opressivos, claustrofóbicos até. É um alívio chegar a Alexandria e respirar o ar marinho que atravessa a estrada costeira vindo do outro lado do Mediterrâneo. Há muito tempo ela é a porta do Egito para o mundo. Desde a Antiguidade, foi um centro cosmopolita onde se falavam muitas línguas e as ideias circulavam. O historiador Mostafa El-Abbadi, de 83 anos, lembra que Alexandria já teve 16 jornais em vários idiomas, incluindo grego, italiano, inglês e armênio.

Os aspectos mais cosmopolitas da cidade começaram a desaparecer na era de Gamal Abdel Nasser, que se empenhou em concentrar o poder no Cairo. Hoje Alexandria está superpovoada e empobrecida. Mas alguns egípcios eminentes desejam restaurar sua glória perdida.

O lugar que mais incorpora esse esforço é a Biblioteca de Alexandria, uma construção reluzente e moderna, inaugurada em 2002 perto do local de sua predecessora ptolomaica, a mais importante biblioteca da Antiguidade. Os visitantes adentram o prédio principal por grandes portas envidraçadas, depois passam por um detector de metais. Vemos gente de muitas origens e ideologias, inclusive mulheres de niqab preto, homens de djelaba branca e barba comprida que, em geral, significam crenças fundamentalistas radicais. Uma mulher de hijab, o tipo de véu que cobre o cabelo e deixa o rosto exposto, está estudando Shakespeare, e um jovem egípcio com uma camisa rosa berrante veio para baixar games e filmes, entre eles um filme de ação, Velozes e Furiosos.

Os visitantes, depois de pegar as mochilas e os objetos de metal que passaram pelo detector, param sob a escultura abstrata de uma mulher nua. A obra, intitulada Hipácia, foi feita de lâminas de aço, e mostra os contornos de uma mulher graciosa de seios fartos. Recebeu o nome de uma matemática, astrônoma e filósofa da Alexandria antiga. Um painel na estátua informa que Hipácia foi morta por pessoas “que a consideravam defensora do paganismo e da era clássica, mas na verdade ela foi vítima de ideólogos fanáticos”.

De certa forma, a Biblioteca de Alexandria é mais revolucionária do que tudo o que aconteceu em Tahrir. Entre seus recursos estão uma biblioteca para cegos e duas infantis, uma mapoteca, salas de conferência, centros de pesquisa acadêmica, um museu arqueológico, exposições de arte, um planetário, computadores conectados à internet e acesso por wi-fi, 1,24 milhão de livros e capacidade para mais 6 milhões. Ali são apresentados peças teatrais e concertos. O prédio possui ainda um supercomputador capaz de fazer trilhões de cálculos por segundo. Contém arquivos digitais de história egípcia e 43 gabinetes de computador destinados a coligir toda e qualquer página acessível que já tenha aparecido na internet. Seu acervo possui livros que foram proibidos em outras partes do Oriente Médio. É, em suma, um verdadeiro oásis do pensamento livre em uma região onde, o mais das vezes, se determina o que as pessoas devem pensar, se manda que elas memorizem esses pensamentos e que não tenham outras ideias.

Ismail Serageldin, o primeiro e único diretor da biblioteca até hoje, declarou ao governo Mubarak que não assumiria o cargo a menos que a instituição pudesse ficar responsável pela própria segurança, sem o envolvimento da Amn al Dawla, a polícia de segurança do Estado. “Essa política nos permitiu sediar uma porção de atividades. A Amn al Dawla não podia vir à Biblioteca de Alexandria e nos dar ordens”, diz Khaled Azab, diretor do departamento de projetos especiais. “Dentro da Biblioteca de Alexandria você pode pensar e falar sobre qualquer coisa.”

A maioria dos 2,7 mil funcionários tem entre 25 e 35 anos, “e a geração mais jovem é incluída em todos os planejamentos e programas”, diz Azab. Durante os protestos para derrubar o regime, jovens manifestantes formaram um cordão ao redor da biblioteca para protegê-la de danos.

A jornada à frente

Abu Simbel, as cidades e os vilarejos do vale do Nilo, delta do Nilo e Alexandria: cada escala de nossa jornada nos mostrou algo diferente. No fim, concluímos que o “outro Egito” fora de Tahrir é um caleidoscópio de aspirações e temores. Vire o caleidoscópio de um jeito, e você verá egípcios comuns apenas se esforçando para sobreviver, com medo de que sua vida já tão difícil possa piorar; vire de novo, e encontrará islamitas profundamente idealistas que esperam transformar o Egito em uma teocracia; mais um giro, e verá secularistas empenhados em construir um Egito multicultural, com direitos das minorias e liberdades garantidas a todos.

Muitos egípcios parecem estar à espera de que padrões claros se definam, de que as inúmeras peças coloridas de um novo Egito assumam seus lugares. Alguns temem que o país se fragmente; outros, que forças poderosas entre os militares e outros grupos estejam alimentando esses temores na tentativa de conservar o poder. Parece existir uma divisão fundamental entre os que pensam, acima de tudo, na estabilidade e na segurança e os que estão dispostos a correr riscos para obter uma verdadeira mudança democrática.

Em uma fazenda no extremo sul do país, pergunto ao mecânico Mohammed Haggag o que ele acha do argumento de que sempre existiu uma cultura autoritária no Egito, arraigada nas famílias e tribos, e de que um déspota voltará a governar. Ele discorda, convicto. “A relação que tenho com meus filhos é bem diferente daquela que meu pai tinha comigo”, explica. “Quando meu pai mandava ‘Pare de falar’, eu parava de falar. Não posso fazer isso com meus filhos.”

Isso significa que Haggag, de 59 anos, acha que a revolução será um sucesso? “É como se tivéssemos passado um longo tempo perdidos no deserto”, diz ele, em um tom que sugere a determinação de perseverar. “Encontramos o caminho, mas vai demorar até conseguirmos sair.”

Egito em seu momento. Disponível em < http://viajeaqui.abril.com.br/materias/egito-cairo-revolucao-hosni-mubarak-primavera-arabe?pw=1 >. Acesso em 25 de Maio de 2012.