Por Márcia Jamille Costa | @MJamille | Instagram
Devido a Egiptomania (a reinterpretação de aspectos do Antigo Egito fazendo uso de valores da atualidade) propagada pelas produções cinematográficas e a literatura, muitas pessoas têm impressões equivocadas sobre os faraós. E foi exatamente tais impressões o que levou muita gente a criar certo fetiche ao redor desse cargo. Não é à toa que existem tantas pessoas alegando ser a reencarnação de governantes tais como Ramsés II ou Akhenaton. Até mesmo alguns grupos étnicos e religiosos tentam procurar vínculos com eles. Tal fascínio exótico e nostálgico, apontou o egiptólogo brasileiro Ciro Flamarion Cardoso (1982), é causado por alguns dos elementos culturais do Egito faraônico, a exemplo do caráter divino da realeza e a sua religião, tão profundamente interessada na imortalidade.
Faraó Akhenaton.
É certo que não sabemos quase nada sobre o oficio dos faraós, pior ainda sobre a sua vida particular. Foram poucos os que nos deixaram a chance de saber, mesmo que de forma superficial, sobre a sua vida. A maioria, em verdade, possuiu a preocupação de deixar um legado de esmero e sucesso: registros da humanidade dos reis são bastante raros; usualmente eles eram retratados como a representação do que os egípcios antigos interpretavam como a extrema perfeição, de forma idealizada (BRANCAGLION Jr., 2001; MORRIS, 2010).
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O rei, quando exercendo seu papel de governante do Alto e Baixo Egito, era definido como nsw, enquanto que o seu eu físico era referido como ḥm, “encarnação”, de uma divindade. Eles também usualmente eram chamados de “bom deus” (nṯr nfr) ou ocasionalmente de “o grande deus” (nṯr ‘3). Essa proposta da divindade do faraó é relacionada com a de que ele, além de filho de Rá (divindade solar), seria a representação do próprio deus Hórus, uma ideia existente desde mesmo antes da unificação do Egito, durante o Período Pré-dinástico (MORRIS, 2010).
Faraó Kefren protegido pelo deus Hórus.
A lenda de Hórus só chegou até nós praticamente completa graças ao grego Plutarco, que viveu nos anos finais do Período Faraônico. Em sua obra “De Ísis e Osíris” ele relata que o deus Osíris governou como rei do Egito ao lado da sua irmã Ísis. Porém, ambos possuíam mais dois irmãos, o casal Néftis e Seth. Esse último tinha muita inveja Osíris então o assassinou para usurpar o trono. Para evitar que o seu corpo fosse resgatado, Seth desmembrou Osíris e espalhou cada parte sua pelo Egito, o que levou Ísis a realizar uma longa jornada para reaver cada parte do marido, juntá-lo com o auxílio de bandagens e trazê-lo de volta a vida por meio de magia. Após uma série de tentativas de reanimar a múmia do marido, Ísis finalmente obtém sucesso e recriando o pênis de Osíris copula com ele, engravidando assim de Hórus, que, anos mais tarde, viria a lutar contra o tio Seth para assumir o seu lugar de direito como rei do Egito (MORRIS, 2010).
Este mito representava, dentre muitas coisas, o poder que a legitimidade real possuía e a alta importância que a mesma tinha para os egípcios. Por isso, existiu muita preocupação em relação ao assunto. Assim, para evitar problemas com a legitimação real, os reis e as rainhas casavam-se com parentes muito próximos, tais como irmãos ou filhos. Essa prática não tinha somente como princípio afastá-los do mundo dos mortais, se assemelhando assim ao casal de irmãos divinos Ísis e Osíris, mas, garantir que o sangue do herdeiro real fosse “puro” (MORRIS, 2010).
Porém, isso nem sempre foi possível.
Desta forma, quando um governante não era o original herdeiro do trono, para legitimá-lo ele poderia recorrer a profecias ou apagar os registros dos reis anteriores, como foi o caso de Hatshepsut e Tutmés III (MORRIS, 2010). A primeira, quando assumiu o trono, declarou em seu templo mortuário em Deir el-Bahari, que era a filha (ou melhor, filho) do próprio deus Amon-Rá, já o segundo, para legitimar a ascensão ao trono do seu filho, apagou os registros históricos da existência da sua antecessora.
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Quando um rei assumia ao trono, era realizada uma viagem cerimonial por todo o Egito, onde ele visitava templos e recebia presentes. Essa viagem era conhecida como “A criação da ordem nas províncias”. Ainda tinha o jogo dos mistérios da sucessão, uma performance para mostrar a consideração do novo rei para com o antigo. Apesar dessa jornada, as saídas do faraó do seu palácio real eram bastante raras [1], ocorrendo somente durante atividades muito especiais — eventos religiosos ou batalhas importantes, por exemplo —.
Ramsés II – Museu Egípcio de Turim.
Faraó Hatshepsut.
Contudo, quando essas saídas ocorriam, altos cortesãos beijavam o chão pelo qual ele passaria para simbolizar respeito e resignação. Nós encontramos registros escritos desse ato em alguns exemplos literários como o “Conto do Naufrago” e Sinuhe. Também temos o texto de um sacerdote de Khnum, que registrou que “beijou a terra antes do senhor da catarata[2]” (BREASTED, 1988 apud MORRIS, 2010). A prática de beijar o chão foi uma tradição tão importante que existiu, por exemplo, durante o Antigo Reino um escritório chamado “supervisor dos beijos no solo” (STRUDWICK, 2005 apud MORRIS, 2010). Agora, se beijar o chão foi considerado um prestigio importante, beijar os seus pés era um extremo privilégio, digno de ser citado no túmulo de quem fez a ação (MORRIS, 2010).
Referências bibliográficas:
BAKOS, Margaret (org). Egiptomania: O Egito no Brasil. Rio de Janeiro: Paris Editorial, 2004.
BRANCAGLION Jr., Antonio. Tempo, material e permanência: o Egito na coleção Eva Klabin Rapaport. Rio de Janeiro: Casa da Palavra – Fundação Eva Klabin Rapaport, 2001.
CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 1982.
DESPLANCQUES, Sophie. Egito Antigo (Tradução de Paulo Neves). Porto alegre: L&PM, 2011.
MORRIS, Ellen. “The Pharaoh and Pharaonic Office”. In: LLOYD, Alan, B. A Companion to Ancient Egypt. England: Blackwell Publishing, 2010.
[1] E ainda assim estátuas do rei poderiam ser utilizadas para representar o próprio.
[2] Referente às cataratas do Nilo.