Por Márcia Jamille Costa | @MJamille | Instagram
Em 2013, após dois anos de pesquisas, finalmente apresentei a dissertação que me deu o título de mestra em arqueologia. O tema era relacionado com a discussão da importância de se estudar os artefatos ligados de alguma forma com os ambientes aquáticos durante o Período Faraônico. Nesse mesmo trabalho levantei propostas de análises e exemplos de artefatos. Afinal, é um fato que os seres humanos convivem com a água desde sempre, de uma forma ou de outra.
Os egípcios, por exemplo, tinham uma série de simbolismos em relação aos líquidos como o vinho, a cerveja e, claro, a água (POO, 2010). Mas, essa última possuia um patamar diferente, pois os aspectos imaginários ligados a ela são muito mais complexos, ao ponto de os artefatos relacionados com os ambientes aquáticos ou úmidos possuírem, em alguns casos, um status sagrado. É aqui onde entram as embarcações.
Nas palavras de George Bass, o pioneiro da Arqueologia Subaquática, o papel das embarcações no progresso humano não deve ser subestimado. Em várias e diferentes sociedades elas foram as responsáveis por transportar matérias-primas e ideias. Capazes de deslocar pessoas com rapidez, o seu uso permitiu chegar a ilhas e continentes, abrindo assim cada vez mais o horizonte humano (BASS, 1969).
Recentemente, uma equipe de arqueólogos encontrou, gravadas na parede de um fosso em Abidos, gravuras representando uma frota egípcia. No local, que fica próximo ao túmulo do faraó Sesostris III (Médio Império; 12ª Dinastia) [1], outrora tinha sido encontrada uma embarcação com cerca de 20 metros [2].
Foto: Josef Wegner
Na iconografia foram contados 120 navios, desenhados sobre uma superfície de gesso. Alguns são bem detalhados, contendo informações como remos e timões [2].
Foto: Josef Wegner
Não se sabe quem realizou tais registros. O arqueólogo responsável pelo estudo do local, Josef Wegner, apresentou várias teorias do que poderia ter ocorrido, mas, salientando que nenhuma é uma certeza: talvez foram feitos pelos próprios construtores do local, foram parte de uma cerimônia religiosa ou invasores fizeram isso. A única coisa que é garantia é que em algum momento posterior ao sepultamento do faraó um grupo de ladrões invadiram o recinto e levaram tábuas que pertenciam a embarcação que um dia esteve lá [2].
Foto: Josef Wegner
145 peças de cerâmicas também foram encontradas no espaço, provavelmente para guardar algum líquido. “As oferendas líquidas foram parte integral do culto funerário pessoal nas práticas mortuárias egípcias, mas não aparecem associadas normalmente a objetos inanimados” comentou o Wegner no seu artigo “A Royal Boat Burial and Watercraft Tableau of Egypt’s 12th Dynasty (c.1850 BCE) at South Abydos“, publicado na Online Library [2].
Muitas outras descobertas envolvendo embarcações:
Em sítios arqueológicos egípcios foi possível encontrar desenhos representando embarcações durante o Pré-dinástico (5300-3000 a. E. C.) e a prática se seguiu com força durante o faraônico, mas desta vez também através de pequenos modelos ou de embarcações propriamente ditas. Um ótimo exemplo, sem dúvidas, são as barcas do rei Khufu, descobertas em 1955. Uma delas, a Khufu I, encontra-se montada próximo a sua pirâmide (HAWASS, 1992; O’CONNOR, 2007).
Khufu I
Khufu I
Muitos anos antes, em 1894, na área de Dashur foram descobertas seis embarcações próximas a pirâmide de Sesostris III[1]. De todas somente o paradeiro de quatro é conhecido: duas permanecem no Egito e as demais nos EUA (DELGADO, 1996).
Um dos barcos de Dashur
Em 1920 um arqueólogo norte-americano encontrou durante a limpeza da tumba de um homem chamado Meketra, em Deir-el-Bahari, um esconderijo que continha uma série de modelos que representavam pessoas em diferentes atividades e uma delas era a de navegação (O’CONNOR et al, 2007). A ideia deste tipo de representação provavelmente tinha relação com a crença de que aquelas cenas se tornariam vivas no além. A outra proposta é a de que seriam somente objetos favoritos do Meketra e que, como tal, os queria em sua nova vida.
Um dos modelos de Meketra
Achados desse tipo também se fez presente na tumba de Tutankhamon, descoberta em 1922, temos exemplos de alguns modelos, 35 no total. Alguns certamente foram postos lá com uma intenção ritual, utilizados como um transporte mágico para o além (JAMES, 2005; O’CONNOR et al, 2007). Remos também foram encontrados, todos depositados na câmara mortuária.
Modelo de embarcação encontrada na tumba de Tutankhamon. Foto: Harry Burton.
E em 2012, um uma equipe de arqueólogos encontrou em Abu Rawash uma barca funerária de madeira que pode ter sido usada durante o governo do faraó Den (também chamado de Udimu), da 1ª Dinastia.
O que todas essas descobertas possuem em comum é que elas não só nos dão informações sobre o ponto de vista religioso egípcio, mas, também sobre a tecnologia de construção desse tipo de transporte, tripulação e design.
Para saber mais: Publiquei um artigo intitulado “Por uma Arqueologia egípcia mais ‘aquática’” na Revista Labirinto, onde mostro alguns dos aspectos mais marcantes destas antigas comunidades que demonstram que a água durante o faraônico foi mais do que um espaço para a captação de recursos e que ela deve receber uma atenção maior por parte da Arqueologia.
Fontes:
[2] Hallan una flota de más de 120 barcos grabada junto a la tumba del faraón Sesostris III. Disponível em < http://www.abc.es/cultura/abci-hallan-flota-mas-120-barcos-grabada-junto-tumba-faraon-sesostris-201611021401_noticia.html >. Acesso em 02 de novembro de 2016.
BASS, George, Fletcher. Arqueologia Subaquática. Lisboa: Editorial Verbo, 1969.
DELGADO, James. Encyclopedia of Underwater and Maritime Archaeology. London: British Museum, 1996.
HAWASS, Zahi. “A Burial with an Unusual Plaster Mask in the Western Cemetery of Khufu’s Pyramid”. In: FRIEDMAN, Renée; ADAMS, Barbara. The Followers of Horus: Studies Dedicated to Michael Allen Hoffman. Oxford: Editora Oxbow, 1992.
JAMES, Henry. Tutancâmon (Tradução de Francisco Manhães). Barcelona: Folio, 2005.
O’CONNOR, D.; FORBES, D.; LEHNER, M. Grandes civilizações do passado: terra de faraós. Tradução de Francisco Manhães. 1ª Edição. Barcelona: Ed. Folio, 2007.
POO, Mu-chou. “Liquids in Temple Ritual”. In: DIELEMAN, Jacco; WENDRICH, Willeke; FROOD, Elizabeth; BAINES, John. UCLA Encyclopedia of Egyptology. Los Angeles: UC Los Angeles, 2010.
[1] Sesostris III possuiu duas sepulturas: uma em Abidos e outra em Dashur. Certamente uma delas foi um cenotáfio.