A cerveja no Egito Antigo: desde a intoxicação ao seu uso religioso

Por Márcia Jamille Costa | @MJamille | Instagram

Era um grande costume das pessoas que viveram durante a Antiguidade egípcia registrar nas paredes de suas tumbas cenas da vida cotidiana: são imagens que mostram o cultivo dos campos, os momentos de deleite com os parentes, brigas, brincadeiras e, naturalmente, a alimentação. Graças a isso, possuímos uma vasta informação acerca da alimentação das pessoas que viveram às margens do Nilo e nos oásis durante a era dos faraós e descobrimos que dentre uma variedade de coisas eles consumiam muita cerveja (TALLET, 2006).

Herget 034 - A Middle Kingdom Brewery

Reconstituição da vida no Antigo Egito: equipe em diferentes fases da elaboração da cerveja. Autor: Desconhecido.

Os egípcios eram verdadeiros mestres cervejeiros; sabe-se, devido a um papiro médico, que existia ao menos dezessete tipos, mas é provável que houvera muito mais (STROUHAL, 2007). Por outro lado, infelizmente a maioria dos nomes se perderam ao longo dos séculos (TALLET, 2006).

Rapaz confeccionando cerveja. Imagem disponível em TIRADRITTI, Francesco. Tesouros do Egito do Museu do Cairo. São Paulo: Manole, 1998. p. 102.

Cenas da fabricação dessa bebida também são conhecidas, contudo, não são muito instrutivas, mostrando somente os passos básicos (TALLET, 2006). No canal do A.E. comentei sobre alguns dos processos conhecidos para a elaboração dessa bebida. Confira abaixo:

Porém, relatos do seu preparo igualmente foram registrados por viajantes que visitaram o país anos após o fim do Período Faraônico e que podem dar uma leve ideia de como seria confeccionada a cerveja original. Abaixo o de um homem chamado Zózimo, no século IV depois da Era Cristã:

Para fazer cerveja:  obter cevada branca, limpa e de boa aparência, deixar macerar um dia e depois tirar da água e deixar descansar no lugar resguardado até a manhã seguinte.  A seguir deixar macerar durante mais cinco horas.  Depois derramar num recipiente poroso de um braço de profundidade e conservar úmido. Deixar assim até que se formem flocos, depois deixar secar ao sol até que estes flocos sejam reabsorvidos, pois esta emulsão é amarga. Moer cevada e formar pães, cozê-los superficialmente até que comecem a dourar. Dissolver então em água açucarada e passar através de uma peneira fina. Quando se chega a este ponto, os dois preparados são misturados. Outros fazem os pães e os põem num forno com água e os deixam cozer um pouco, sem permitir que ferva ou esquente de mais. Depois são retirados da água e coberto, é aquecido e provado. (PAULY-WISSOWA, apud TALLET, 2006, pág. 149)

Também tem a de um químico do início do século XX:

Colhe-se trigo de boa qualidade, e três quartos dele são limpos e moídos grosseiramente.

Estas três quartas partes do trigo moído são vertidas num amplo tabuleiro de madeira e amassadas com água para obter uma pasta à qual se acrescenta levedo.

Confeccionam-se pães grossos com a massa assim obtida.

São cozidos muito levemente para não destruir o levedo.

O último quarto de trigo, não moído, é umedecido com água e exposto ao ar durante um tempo. Depois se tritura enquanto ainda está úmido.

Os pães são partidos e colocados num recipiente com água. Acrescenta-se o trigo úmido triturado. A mistura fermenta devido à presença de levedura no pão. Para obter uma fermentação mais rápida, acrescenta-se um pouco de buza de uma colheita anterior. Deixa-se fermentar um dia.

Finalizada a fermentação, o preparado é passado por uma peneira de fibra vegetal espremendo bem o produto com as mãos contra a peneira. (LUCAS, 1962 apud TALLET, 2006, pág. 149)

Sabe-se que a cerveja já era consumida durante o Período Pré-Dinástico (c. 5300-3000 a.E.C) (TALLET, 2006) e ao longo das dinastias tornou-se parte da dieta egípcia, em especial a conhecida como henequet, a mais popular de todas e que fez parte do cardápio cotidiano (TALLET, 2006).

Ela também foi utilizada como forma de pagamento (TALLET, 2006): lembrem-se que a moeda só passou a ser utilizada no Egito nos tempos tardios. A economia era baseada na permuta e no escambo (DERSIN, 2007).

A cerveja egípcia era alcoólica?

Não sabemos o quão alcoólica algumas cervejas egípcias poderiam ser. A henequet, que era consumida mais amplamente, tinha uma propriedade mais energética, entretanto, uma chamada de seremet, que era mais cara, era muito mais alcoólica (TALLET, 2006).

São conhecidas algumas iconografias que retratam pessoas bêbadas, além dos relatos de epifania ou de contato com o sobrenatural, ambos alcançados após o consumo de cerveja ou vinho em festivais religiosos. Em soma, um famoso mito, “A Destruição da Humanidade”, descreve como a deusa Sekhmet/Mut/Hathor ficou totalmente embriagada após beber muita cerveja vermelha, crendo que bebia sangue humano (BRYAN, 2010).

O uso religioso da cerveja:

Embora nos dias de hoje seja vista como sinônimo de futilidade, na Antiguidade egípcia a cerveja era um líquido sagrado ao lado do vinho, do leite e da água. Ela fez parte em grande proporção das listas de oferendas funerárias além dos rituais de libação (POO, 2010).

Mulher preparando cerveja. Imagem disponível em EINAUDI, Silvia. Coleção Grandes Museus do Mundo: Museu Egípcio Cairo (Tradução de Lúcia Amélia Fernandez Baz). 1º Título. Rio de Janeiro: Folha de São Paulo, 2009. p. 49.

Uma das divindades relacionadas com essa bebida foi Hathor, cujo um dos epítetos é “Senhora da Bebedeira”, relacionado com o já citado mito “A Destruição da Humanidade”, que era rememorado no Festival da Bebedeira, uma comemoração realizada no início do ano egípcio, na estação Akhet (nos dias atuais seria entre o final de julho e início de agosto).

— Saiba mais: O Festival da Bebedeira do Egito Antigo

No templo dessa divindade em Dendera é possível encontrar algumas liturgias que citam a cerveja e a importância dada a sua correta confecção:

Pegue a cerveja doce, o fornecimento para a sua majestade, que é fabricado corretamente. Como é doce o seu sabor, como é doce o seu cheiro! (Chassinat and Daumas: Dendara VII: 130 apud POO, 2010).

Nesta é citado que o Ka também se beneficiará da bebida:

Como são belos estes jarros de cerveja, que são fervidas em seu tempo correto, que enchem o seu Ka no momento do seu desejo. Que o seu coração se alegre diariamente (Chassinat and Daumas: Dendara VI: 163: 9 – 11 apud POO, 2010).

 

Referências bibliográficas:

BRYAN, Betsy. “Hatshepsut and Cultic Revelries in the New Kingdom”. In: GALÁN, José, BRYAN, Betsy, DORMAN, Peter. Creativity and Innovation in the Reign of Hatshepsut. Chicago: The University of Chicago, 2014. Paper from the Theban Workshop 2010

DERSIN, Denise. A história cotidiana às margens do Nilo (Tradução de Francisco Manhães, Marcelo Neves, Carlos Nougué, Michael Teixeira).  1ª Edição. Barcelona: Folio, 2007.

POO, Mu-chou. “Liquids in Temple Ritual”. In: DIELEMAN, Jacco; WENDRICH, Willeke; FROOD, Elizabeth; BAINES, John. UCLA Encyclopedia of Egyptology. Los Angeles: UC Los Angeles, 2010.

STROUHAL, Eugen. A vida no Antigo Egito. (Tradução de Iara Freiberg, Francisco Manhães, Marcelo Neves).  1ª Edição. Barcelona: Editora Folio, 2007.

TALLET, Pierre. A culinária no Antigo Egito (Tradução de Francisco Manhães, Maria Júlia Braga, Joana Bergman). Barcelona: Folio, 2006.