Resgate ou espetáculo? O problema dos artefatos egípcios içados do mar próximo de Alexandria

Na última quinta-feira, dia 21 de agosto de 2025, vimos algumas fotografias circulando pela internet que mostravam artefatos egípcios sendo içados para fora do mar. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que esses objetos estavam sendo retirados da Baía de Abukir.

Artefatos antigos de cidade submersa são retirados do Mediterrâneo perto de Alexandria

Eles foram tratados como parte de um “resgate”, o que chamou imediatamente a minha atenção, sobretudo porque, nas matérias iniciais, não ficou claro o motivo de estarem sendo retirados da água. Isso acabou gerando certa confusão em parte do público, que entendeu que os objetos içados faziam parte de uma nova descoberta arqueológica, o que, até o momento, não foi esclarecido com todas as palavras se de fato é.

Então, vamos por partes.

Primeiramente, a Baía de Abukir fica na costa do Mar Mediterrâneo, no Egito, e é extremamente conhecida pela sua arqueologia subaquática. Isso porque, na década de 1990, foram encontradas ali as ruínas de uma antiga cidade: Canopus. E vale um parêntese: artefatos arqueológicos submersos já haviam sido localizados na região desde a década de 1930, mas apenas nos anos 1990 foi confirmada sua origem, vinculada à cidade de Canopus.

Artefatos antigos de cidade submersa são retirados do Mediterrâneo perto de Alexandria

Essa descoberta é importante porque se trata de uma cidade que prosperou durante o Período Greco-Romano, sendo famosa por seus grandes santuários de Osíris e Serápis, que recebiam peregrinos de diversas regiões, e se manteve até aproximadamente o século VIII d.E.C., quando acabou desaparecendo graças a elevação do nível do mar. E também em razão da liquefação do solo, um fenômeno natural desencadeado pela pressão sobre terrenos ricos em argila e água. Esses dois fatores não apenas submergiram Canopus, como também afetaram outras cidades, a exemplo da vizinha Alexandria, com a qual Canopus era conectada por uma grande via.

É nesse contexto que entramos na questão dos içamentos noticiados recentemente. Como expliquei, as primeiras matérias não esclareciam o motivo da operação. O que foi relatado é que o Ministério das Antiguidades e do Turismo do Egito teria promovido o evento para mostrar a riqueza arqueológica da região, com a presença de diplomatas e da imprensa internacional. Segundo as reportagens, cinco objetos foram retirados do mar. Foi informado também que o Ministério está comprometido com os acordos internacionais, em especial a convenção da UNESCO, que recomenda a preservação de artefatos submersos em seus locais originais, a menos que haja condições seguras para sua recuperação. O arqueólogo Khaled Saad reiterou à imprensa essa tendência de preservar objetos embaixo d’água, em vez de retirá-los.

Ainda assim, não ficou clara a relevância dessa ação.

Buscando respostas, encontrei em outra matéria que, entre quinta e sexta-feira, ocorreu a abertura de uma exposição especial no Museu Nacional de Alexandria, intitulada Segredos da Cidade Submersa. Nessa ocasião, também foi inaugurada a nova biblioteca do museu, equipada com cerca de 1.100 livros especializados em história egípcia, grega, romana, copta, islâmica e moderna, além de museologia, conservação e até literatura infantil. Isso me leva a pensar se os içamentos não tiveram como objetivo apenas gerar repercussão midiática para essas iniciativas.

Paralelamente, classificar o ato como “resgate” pode induzir o público ao erro, transmitindo a ideia de que os artefatos estavam abandonados, o que pode não corresponder à realidade. Apesar de ocorrer embaixo d’água, a arqueologia subaquática segue parâmetros muito semelhantes à arqueologia terrestre (ao menos é o que se espera). A diferença é que os profissionais precisam de equipamentos de mergulho e de ferramentas adaptadas. Há anos, especialistas da área trabalham para desfazer o estigma de que a arqueologia subaquática é “menos científica” ou “à parte” da arqueologia em terra, se empenhando em explicar que os achados no fundo do mar (ou em qualquer outro ambiente aquático) fazem parte do mesmo contexto histórico e cultural dos que permanecem em superfície.

Artefatos antigos de cidade submersa são retirados do Mediterrâneo perto de Alexandria

Por isso, o uso do termo “resgate” deve ser feito com cautela. Sem contar que para remover artefatos submersos, é necessário um ótimo motivo, já que eles passaram séculos — no caso de Canopus, milênios — em equilíbrio com o ambiente aquático. Retirá-los significa romper esse equilíbrio, exigindo a criação de condições artificiais para sua preservação.

Outra questão que me intrigou foi: por que justamente aqueles objetos foram escolhidos? Qual será o destino deles?

A resposta é que, de acordo com o The Art Newspaper, estes objetos serão exibidos no Museu Nacional de Alexandria. Mas, se não tiver outra justificativa plausível (poluição na região, área de tráfico de artefatos, etc), que não seja terem sido retiradas somente para compor acervo de museu, arrisco dizer que, para mim, esses objetos foram içados apenas para gerar publicidade. Manterei essa opinião até que surjam informações mais claras sobre o assunto.

Em breve lançarei um vídeo em meu canal de Egiptologia (clique aqui para se inscrever) onde discutirei mais sobre esta notícia e sobre as pesquisas subaquáticas na região.

Fontes:

In Photos: Egypt recovers three massive ancient colossi from Abu Qir seabed. Disponível em < https://english.ahram.org.eg/NewsContent/9/41/551647/Antiquities/GrecoRoman/In-Photos-Egypt-recovers-three-massive-ancient-col.aspx >. Acesso em 22 de agosto de 2025.

‘Secrets of the Sunken City’ exhibit reveals Alexandria underwater heritage. Disponível em < https://english.ahram.org.eg/NewsContent/1/1238/551631/Egypt/Tourism/;Secrets-of-the-Sunken-City;-exhibit-reveals-Alexa.aspx >. Acesso em 22 de agosto de 2025.

Egypt considers underwater museum to showcase sunken cities off Alexandria coast. Disponível em < https://english.ahram.org.eg/NewsContent/1/1238/546509/Egypt/Tourism/Egypt-considers-underwater-museum-to-showcase-sunk.aspx >. Acesso em 22 de agosto de 2025.

Egypt to build world’s first underwater museum with submerged treasures. Disponível em < https://egyptindependent.com/egypt-to-build-worlds-first-underwater-museum-with-submerged-treasures/ >. Acesso em 22 de agosto de 2025.

Egypt Reclaims Its Sunken Heritage: Ramesses II Sphinx Resurrected from the Depths of the Mediterranean. Disponível em < https://www.facebook.com/story.php?story_fbid=1247439447397535&id=100063944743762&mibextid=wwXIfr&rdid=QEEVUJu3CwIJQq0Y# >. Acesso em 22 de agosto de 2025.

6 missões de Arqueologia Subaquática serão realizadas no Egito este ano (2017). Disponível em < https://arqueologiaegipcia.com.br/2017/04/02/6-missoes-de-arqueologia-subaquatica-serao-realizadas-no-egito-este-ano-2017/ >. Acesso em 22 de agosto de 2025.

“Cabeça de cristal” foi encontrada em naufrágio próximo de antiga cidade da rainha Cleópatra VII. Disponível em < https://arqueologiaegipcia.com.br/2017/12/01/cabeca-de-cristal-foi-encontrada-em-naufragio-proximo-de-antiga-cidade-da-rainha-cleopatra-vii/ >. Acesso em 22 de agosto de 2025.

Sunken Civilizations: Canopus. Disponível em < https://www.franckgoddio.org/projects/sunken-civilizations/canopus/  >. Acesso em 22 de agosto de 2025.

Ancient artefacts from sunken city lifted out of Mediterranean near Alexandria. Disponível em < https://www.theartnewspaper.com/2025/08/25/underwater-ancient-artefacts-recovered-canopus-submerged-site-near-alexandria >. Acesso em 25 de agosto de 2025.

A sunken city’s treasures are pulled from the depths after 2,000 years. Disponível em < https://www.nbcnews.com/world/middle-east/ruins-2000-year-old-sunken-city-pulled-waters-alexandria-egypt-rcna226492 >. Acesso em 25 de agosto de 2025.

Photos from Egypt show archaeologists and divers recovering ancient artifacts from the seabed. Disponível em < https://apnews.com/photo-gallery/egypt-alexandria-divers-ancient-artifacts-f8c4e808cd671cf08ddad3ce00aaa07b >. Acesso em 25 de agosto de 2025.