Recentemente recebi este texto do leitor Paulo Eduardo Michelotto, que é entusiasta da Arqueologia e é autor do livro “A crônica inca proibida”. Trata-se de uma entrevista fictícia com o Howard Carter, arqueólogo responsável pela descoberta da tumba do faraó Tutankhamon. Não mudei muita coisa no texto, já que ele não é da minha autoria, exceto incluir algumas imagens. Quem também tiver interesse em escrever um Guest Post é só enviar uma mensagem pelo formulário de contato. Abaixo segue o texto “Entrevista com Howard Carter”:
Chegando na KV (King’s Valley) 62, pedi licença em meio aos trabalhos, cumprimentei Lorde Carnavon, que também estava lá e Carter. Mas Carnavon, que parecia ainda pior, recebeu-me bem e já me apresentou ao arqueólogo.
— Você veio de muito longe para falar comigo e mostrar as novas descobertas ao seu país e teve a boa proteção da Companhia de Navegação Fantástica. – disse-me Carter, apertando firmemente a minha mão e olhando nos meus olhos.
Carter era um homem um pouco gordo, de bigode e óculos, narigudo, com cabelo penteado à moda antiga e trajava roupas de trabalho. Como toda pessoa importante, cuja fama atravessa séculos, não era muito dado à conversas, era sério e reservado.
Quanto à empresa Fantástica, naquele tempo, a Companhia era de navegação porque era o único meio de transporte intercontinental. Hoje, com certeza, a Companhia Fantástica trata de aviação, como o principal meio de transporte.
— Não quero tomar o tempo do Senhor, sei que o Senhor está trabalhando, mas agradeço a recepção. Podemos começar?
— Sim senhor. A sua Companhia me paga bem e patrocina parte das minhas escavações. Fique o tempo que precisar.
— O Senhor foi o primeiro arqueólogo a trabalhar no Egito?
— Não sou arqueólogo formado em universidade. Os primeiros arqueólogos a trabalharem aqui, no Egito, datam do século XVIII, eram expedições europeias que iniciavam o trabalho científico. Antes eram ladrões de tumbas e aventureiros, séculos que se seguiram ao sepultamento dos faraós.
— Onde e quando o Senhor nasceu?
— Carter me encarou e respondeu:
— Em Kensigton, Londres, Inglaterra, em 09 de maio de 1874.
— Como o Senhor iniciou o trabalho aqui?
— Eu fazia desenhos encontrados nas escavações para as comunidades científicas, desde jovem. Fui assistente de um renomado arqueólogo inglês, o Sr. Flinders Petrie, um dos maiores arqueólogos de todos os tempos e também meu mentor. Com 27 anos, fui inspetor-chefe dos monumentos de Alto Egito e Núbia, e o fato que me ajudou foi eu conhecer vários dialetos árabes. Depois fui trabalhar na Inspetoria do Baixo e Médio Egito.
— Como o Senhor aprendeu a desenhar?
— Meu pai, Samuel Carter, era pintor de retratos de família da região, um artista excepcional. Com ele, aprendi o ofício da pintura.
— Como o Senhor chegou ao Egito?
— Como eu não pretendia seguir os negócios da minha família, aproveitei uma oportunidade para ir ao Egito e trabalhar para a Egyptian Exploration Fund, a fim de fazer cópias dos desenhos e inscrições de documentos para os cientistas desta época. Em outubro de 1891, se não me falha a memória, com 17 anos, cheguei a Alexandria.
— Onde foi o primeiro trabalho, em Alexandria, mesmo?
— Não. Foi em Bani Hassan. Fiquei tão entusiasmado que chegava a trabalhar o dia inteiro e depois dormia com os morcegos em uma tumba” (risos). “ Foi neste momento em que identifiquei minha verdadeira vocação. Como sei que vai me perguntar, trabalhei após nas escavações Deir el Babri, templo da Hatshepsut, onde meus desenhos ficaram famosos, pelos níveis de detalhes e técnicas de restauração de monumentos e também por minhas escavações.
— O Senhor poderia citar outra descoberta importante realizada pelo Senhor?
— Sim, as tumbas de Amen-hotep IV e Tutmés IV, de Hatshepsut, a poderosa mulher faraó, além de ter restaurado outros monumentos.
— Qual a pista principal que te levou ao faraó Tutancamon?
— Uma das minhas aspirações foi encontrar a tumba de um rei desconhecido, cujas poucas peças encontradas tinha o seu nome gravado. Então desconfiei que ele estava enterrado aqui, no Vale. Alguns potes de cerâmica contendo materiais utilizados durante o funeral de Tutancamon foram encontrados aqui perto, deduzindo que local do túmulo estava perto. Sugeri para o Lorde Carnavon, a quem você já conhece, tomar como ponto de partida, um triângulo formado pelas tumbas de Ransés II, o Grande, Merenptah e Ransés VI”.
— Como foi o trabalho no verão?
— Impossível às escavações. Não conseguimos trabalhar no verão, devido ao calor, então as escavações só foram feitas no inverno.
— Quantos trabalhadores o Senhor utilizou?
— Vinte e seis.
— Quanto tempo durou?
— Sete anos de intenso trabalho, até encontrar este degrau esculpido em rocha viva, ao pé da tumba de Ransés VI. – e Carter mostrou o degrau, que levava para baixo da terra, numa escada de pedra.
— Este degrau era o início desta escada, que levava a um corredor que acabava numa porta selada. De lá, encontramos um corredor cheio de entulho que levava até a uma outra porta. Venha ver, Aventura.
Desci e vi as portas e o corredor. Era realmente emocionante ver tudo aquilo. Imaginem só, na data de hoje, ver tudo que teria embaixo, se não tivessem retirado todo os objetos de ouro achados. Ah, meu Deus, eu veria a tumba do faraó! Minhas pernas tremeram. A tumba de Tutancamon possuía uma escada de dezesseis degraus, um corredor que levava a antecâmara, um anexo atrás da antecâmara, a câmara funerária, onde ficava o sarcófago e a câmara de tesouros. A câmara funerária era a única decorada com desenhos na parede.
E Carter, continuou:
— Descobrimos dezesseis degraus que levavam a um corredor que acabava numa porta selada. Como Carnavon estava na Inglaterra, esperei a sua chegada para abrir a tumba. Encontramos o corredor cheio de entulho, como lhe falei, que levava até outra porta, a dez metros da primeira. Ambas as portas eram seladas. Os selos era de Tutancamon e da necrópole real. Com as mãos trêmulas, abri um pequeno buraco no canto superior esquerdo. Lá introduzi uma barra de ferro que não tocava em nada e olhei o buraco. Carnavon me perguntou o que eu via e eu disse coisas maravilhosas.
— Isto é demais. O que o Senhor viu?
— Vi objetos de ouro, muitos. Onde eu conseguia avistar, era tudo dourado e estátuas de animais e de guardiões, muitos utensílios, brinquedos, estátua de deuses. – disse o arqueólogo, se empolgando – vamos descer para dar uma olhada rápida?
— Demorou – respondi.
— Como? – indagou-me o arqueólogo.
— Vamos, eu quis dizer. – achando que Carter não havia entendido muito bem as gírias do mundo moderno.
Neste momento Lorde Carnavon que nos acompanhava parou e disse:
— Amigos, vou parar por aqui. Pode descer, Paulo, fique à vontade com o nosso cientista e com o rei Tut. Vou dar umas baforadas no meu charuto, por aqui mesmo.
Eu não acreditava que iria conhecer tudo aquilo de perto, bem pouco tempo da descoberta da tumba do rei menino.
Carter segurou numa lanterna, abaixou-se e iniciou a descida e, eu, o acompanhei para ver a tumba recém descoberta.
Os degraus não eram grandes e a porta também não era alta, estava tudo muito escuro e Carter focava para baixo. Minha curiosidade aumentava a cada degrau. Ele estabilizou-se no terreno e eu cheguei junto. Acabaram os degraus e passamos pelo corredor até a porta da antecâmara. Ele focou a parede e o dourado refletido do local e ofuscou-me a vista. Como não pude me conter, exclamei:
— Também vejo coisas maravilhosas.
Havia muitos objetos de ouro, muitos mesmos. De estatuetas a objetos como taças, jarros, enfeites, joias, ornamentos, vasos, esculturas, armas e objetos pessoais, que depois no total, apurou-se mais de cinco mil peças.
Na antecâmara, o primeiro cômodo de 8 por 3,6 metros, havia três divãs ornamentados com cabeças de animais e mais de 700 objetos. Baús, vasos, flechas, tronos, tudo para auxiliar a o faraó no pós-morte, inclusive vinho tinto que o faraó adorava. Havia quatro bigas e três camas funerárias.
Havia dois guardiões, estátuas idênticas ao rei Tut com lança, que cercavam a porta selada, que era realmente de arrepiar e Carter disse-me que ficou impressionado com a sua perfeição.
— O túmulo foi violado apenas aqui, na antecâmara onde os ladrões penetraram ali por duas vezes, quinze anos depois do funeral do rei Tut – disse-me Carter.
Aprofundamos na câmara mortuária, que era o próximo cômodo e ela estava preenchida por quatro capelas em madeira dourada encaixadas umas nas outras, que protegiam um sarcófago em quartzito de forma retangular, próprio de sua dinastia. Em cada um dos cantos do sarcófago estão representadas as deusas Ísis, Néftis, Neit e Selket.
Ísis, a mais conhecida das deusas, é a deusa da maternidade, das mulheres e da magia, deusa do Sul, protetora de Imset (o filho de Hórus que vigiava o frasco canópico contendo o fígado).
Néfis, outra deusa que protege os mortos, deusa do Norte, protetor de Hapi (o filho de Hórus que vigiava o frasco canópico contendo os pulmões).
Neit, deusa da caça e da guerra, deusa do oriente, protetora de Duametef. (o filho de Hórus que vigiava o frasco canópico contendo estômago).
Selket, deusa dos escorpiões, cura e magia e do Ocidente, protetora de Qebhesenuf (o filho de Hórus que vigiava o frasco canópico contendo os intestinos).
Vaso ou frasco canópico ou canopo eram os vasos usados pelos antigos egípcios para guardar as vísceras embalsamadas dos mortos.
— Veja isto, Aventura – disse-me Carter – apontando para a pintura da parede da câmara mortuária – isto é o ritual da abertura da boca, um ritual praticado pelo sacerdote de Anúbis e pelo sucessor do falecido, normalmente o filho mais velho, mas aqui é o sacerdote Ai, vestido de pele de leopardo, que o sucede e que faz o ritual. Mesmo sendo Ai bem mais velho do que Tutancamon.
— Para que servia o ritual?
— Acreditavam que poderiam devolver os sentidos da múmia, por isso os olhos e boca da estátua ou caixão e eram tocados com um objeto, um boi era sacrificado e a pata dianteira direita era colocado junto ao falecido.
Carter prosseguiu e eu o acompanhei até onde se encontrava o sarcófago. Dentro dele, havia três caixões antropomórficos, encontrando-se a múmia no último deste caixões e sobre a face da múmia do rei Tut a mais famosa máscara funerária do mundo, toda de ouro, aliás, 11 quilos de ouro. Tut ainda calçava sandálias de ouro e vinte dedais do mesmo metal. Pude observar tudo com o facho da lanterna de Carter.
— Nossa! É incrível! – fiquei todo emocionado. Decorados com o símbolo da realeza (a cobra e o abutre, símbolos do Alto e Baixo Egito, a barba postiça retangular e os cetros reais). O terceiro caixão era todo de ouro.
Carter ia percorrendo com a luz da lanterna todo o sarcófago e eu observava as coisas maravilhosas. Passou a luz sobre três ânforas que posteriormente identificaram como recipientes de três tipos de vinho: tinto, um outro vinho tinto mais doce e vinho branco.
Após, a luz da lanterna foi passada na câmara do tesouro, que nós passamos a última porta selada e adentramos, onde havia estátua de Anúbis, com um xale na cabeça, várias jóias, roupas e uma capela, de novo em madeira dourada, onde foram colocados os vasos canópicos do rei. Também havia duas pequenas múmias correspondentes a dois fetos do sexo feminino, que poderiam ser filhas do rei, nascidas prematuramente.
— Olha, eles embalsamavam até feto!
— Sim. – respondeu Carter, mas à meu modo de ver era horripilante .
Observei com atenção todo detalhe que pude, ele ofereceu a lanterna que carregava e pude dar uma olhada melhor na tumba. Fiquei o tempo que pude, sentido aquele cheiro de mofo até que Carter sinalizou que havia terminado a visita e fez sinal para subirmos.
Dei uma última olhada na tumba, meio horrorizado com a visão dos embalsamentos dos fetos e olhei para a estátua de Anúbis, com o xale na cabeça. Carter acabara de atravessar a porta e fiquei sozinho com o deus dos mortos. Tive a impressão dele ter movimentado os olhos em minha direção e ter um leve movimento de cabeça. Foi o bastante para eu sair de lá.
(…)
「fim」
Trecho extraído do livro “Nas escavações com os arqueólogos”, a ser publicado.
Paulo Eduardo Michelotto é advogado, escritor, autor do livro “A crônica inca proibida”, fã de arqueologia e do site “Arqueologia egípcia”.