Por Márcia Jamille | Instagram | @MJamille
Irá estrear no dia 24 de fevereiro (2016) o filme “Deuses do Egito” (“Gods of Egypt“, no original), que está estrelando Nikolaj Coster-Waldau (Game of Thrones) e que cujo o enredo é inspirado na luta entre os deuses Seth e Hórus, um dos mitos mais famosos da Antiguidade egípcia.
Quando o primeiro trailer saiu várias pessoas enviaram mensagens para mim perguntando a minha opinião e eu a dei de forma bem concisa na página do Arqueologia Egípcia no Facebook, até que eu arranjasse um tempinho para poder sentar e escrever mais acerca. Bom, o momento chegou. Abaixo o trailer (legendado):
Porém, antes de apresentar para vocês os meus comentários, preciso conta-lhes antes o mito das batalhas entre Hórus e Seth.
Ísis e Hórus versus Seth
Tudo tem início com o nascimento dos irmãos Ísis (protetora do trono real e senhora da magia), Osíris (senhor da vegetação e fertilidade), Néftis (protetora do palácio) e Seth (senhor do caos e deserto), que casam entre si, sendo que o casal Ísis e Osíris assumem o trono do Egito. Ambos eram extremamente amados pela população, mas não por Seth, que tinha muita inveja e rancor dos dois, em especial por Osíris.
Fonte dos desenhos: Jeff Dahl.
Seth então prepara uma audaciosa cilada para matar o irmão: ele o convida para um banquete onde pede para que cada um dos convidados entrem em uma maravilhosa e grande caixa. Aquele indivíduo que nela coubesse a ganharia como prêmio.
Todos experimentaram a tal caixa, mas ninguém coube perfeitamente, exceto Osíris, o último a prová-la e que se encaixou impecavelmente. Contudo, o que o rei não sabia é que ela tinha sido confeccionada exatamente com as suas medidas e assim que entrou Seth o trancou e jogou a grande caixa no Nilo, onde morreu afogado.
Ísis descobre o ocorrido e recupera a caixa, despertando a ira de Seth que a rouba e esquarteja o corpo do deus falecido, jogando suas partes por toda a extensão do Nilo. Ísis mais uma vez sai em busca do marido e em uma longa jornada recupera uma a uma as partes do seu corpo, exceto o pênis, que foi comido por um peixe. Usando da sua magia e após longas rezas a deusa se transfigura em um falcão fêmea e com o bater das suas asas dá o sopro de vida necessário para ressuscitar o esposo. Ao mesmo tempo faz surgir o pênis e engravida do seu primeiro e único filho, Hórus, uma divindade com corpo humano e cabeça de falcão.
Neste meio tempo, Seth já tomou para si o trono do Egito, fazendo com que Ísis, protegida por sua irmã Néftis e o deus Anúbis, esconda-se nos juncos do Nilo com o recém-nascido Hórus, onde ela lhe ensina tudo o que é importante para reinar e o prepara para o futuro embate com o tio por seu trono de direito.
Após alguns anos, Hórus vai enfrentar o tio, que por sua vez o acusa de não ser filho de Osíris, afinal, Ísis não estava grávida quando ele estava vivo. Mas com a intervenção dos demais deuses é imposto que Hórus e Seth devem batalhar em uma série de atividades e o vencedor ficaria com a coroa.
Seth usa sempre da sabotagem para tentar vencer o sobrinho, mas todas as vezes é desmascarado por Ísis. Porém, em uma das lutas, Seth arranca um dos olhos de Hórus. A visão lhe é devolvida pelo o deus Thot ou a deusa Hathor, que põe um olho substituto no lugar, enquanto o original torna-se o “Wedjat”, que é oferecido a Osíris como um amuleto para a regeneração.
Voltando ao filme “Deuses do Egito”: observando o trailer
Como dito no início, o enredo baseia-se na luta entre estas duas divindades, mais especificamente na batalha em que Hórus perde o seu olho, séculos antes da unificação do Egito, em algum momento do Pré-Dinástico (que é tipo a “Pré-História” egípcia). No entanto, como nos mostra bem o trailer, no filme Seth arrancará ambos os olhos. Mais tarde um deles será recuperado por um humano. Já vemos então a primeira diferença aí, além de que ambos os deuses serão retratados em uma forma humana.
Hórus.
Seth.
O amuleto “Wedjat” incorporado no filme.
Em termos de roupas senti certa inspiração em “Fúrias de Titãs” e um leitor também citou “300”. Praticamente não há roupagem alguma egípcia. Vi alguns toucados nemes estilizados em um figurante ou outro (muitas produções insistem em por estes toucados em cidadãos comuns sendo que era de uso exclusivo do faraó), uma inspiração na Coroa Azul da rainha Neferiti e uma coroa com um elemento da deusa Hathor. É um dos filmes inspirados no Egito que menos possui fortes elementos egípcios. Conseguiu ganhar até mesmo da série TUT.
Eu acho que consigo ver um indiano e um árabe…
Num futuro (espero não muito distante) pretendo fazer um post detalhado falando sobre as roupas egípcias. Vocês verão que não tem nada a ver com isso.
Na testa dela estão os chifres da deusa Hathor.
Na minha humilde opinião, em termos de narrativa cinematográfica não foi ruim incluir armaduras nos deuses, adicionar monstros enormes e bizarros, batalhas surreais, etc. Isto vai levar os amantes de aventura e ficção para o cinema e quem sabe fazê-los pesquisarem mais tarde. Eu, por exemplo, aprendi a gostar de assuntos relativos às constelações graças aos “Cavaleiros do Zodíaco”, porém, o que achei de péssimo gosto e de grande ignorância, foi incluir alguns artefatos claramente inspirados no universo grego e até mesmo mesoamericano, duas culturas totalmente diferentes da egípcia.
Outro grande problema e que enfureceu muitas pessoas levando aos produtores do filme pedirem desculpas, foi a escolha de um elenco quase exclusivamente caucasiano para representar o Egito Antigo. Entretanto, falar que o Egito era totalmente negro, como os críticos mais ferrenhos apontam, também não é condizente com a realidade. O Egito foi um território que recebeu povos de diferentes lugares ao longo da sua formação, apesar do seu “isolamento” geográfico, que tornava difícil a invasão de exércitos, mas não a entrada de grupos de nômades. Está mais para uma civilização “mestiça”, mas é pouco provável que encontraríamos um Nikolaj Coster-Waldau andando em uma rua do faraônico, muito menos ainda em tempos anteriores a época de unificação, como seria o caso do filme.
Mas também tem uns momentos bacanas que servem como curiosidade para vocês, como a cena abaixo, que mostra um tipo de arquitetura que lembra a egípcia faraônica, mas que não existia no Pré-Dinástico, toda via. Apesar do anacronismo, foi legal eles utilizarem elementos egípcios, mesmo que com leves modificações, porque a arquitetura egípcia é tão bonita e combina muito com o deserto.
A seguinte cena também é interessante. Se eu estiver correta trata-se de uma sepultura. Caso seja, tirando o sarcófago de pedra, uma sepultura de alguém com posses durante o Pré-Dinástico era bem assim. Clicando aqui vocês serão levados para um post onde tem a fotografia de uma.
Mais uma curiosidade para vocês tirarem nota é que no período do filme a escrita hieroglífica ainda não existia. Ela só é desenvolvida durante ou após a unificação do Alto e Baixo Egito.
Outra coisa bem legal, e que espero que tenham mantido no filme, é que eles retratarem Hórus enorme. Na iconografia egípcia deuses ou faraós usualmente eram retratados maiores do que o restante da população, então foi uma ótima sacada.
Dito tudo isso, espero que quem assistir este filme e ficar interessado pela história egípcia que leia este post com carinho. A ideia aqui é ensinar aos interessados em aprender. Se você é fã do filme não sinta-se atacado. E caso algum de vocês creditem que não tem nada a ver uma acadêmica discutir entretenimento, leiam então este meu post: — Arqueologia e ficção: tudo vale em nome do entretenimento?
Ademais, bom filme! E não conversem na sala de cinema.
P.S: Se não gostou do filme não precisa descarregar sua frustração aqui. Não faço parte da produção e nem sou obrigada a ler os mais criativos palavrões.
Leituras interessantes:
SANTOS. P. V. Religião e sociedade no Egito antigo: uma leitura do mito de Ísis e Osíris na obra de Plutarco (I d.C.). Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo.
O Antigo Egito e os primórdios do cinema. Disponível em <https://arqueologiaegipcia.com.br/2014/07/13/antigo-egito-primordio-do-cinema/>.