O funeral de Tutancâmon (comentários)

O funeral de Tutancâmon da National Geographic Brasil: uma idéia boa, mas mal direcionada.  

Por Márcia Jamille Costa | @MJamille

 

Desde que a tumba de Tutankhamon foi encontrada em 1922 o frenesi sobre a sua descoberta despertou a curiosidade de vários espectadores, alguns dos quais simples curiosos que pouco sabiam sobre a Arqueologia ou de quem se tratava Tutankhamon, mas que estavam dispostos a visualizar aquele universo tão misterioso que era a de uma tumba milenar intacta e cheia de tesouros. Este faraó falecido em 1322 a. C. desperta ainda hoje o interesse de muitos por sua morte tão prematura e os artefatos (a maioria feito de ouro e pedras semipreciosas) encontrados na sua tumba. Esta curiosidade nada acanhada tem se tornado cada vez mais freqüente desde que as primeiras imagens de seu espólio funerário foram lançadas ao mundo, fazendo assim com que o interesse por esta figura antiga esteja cada vez mais gritante. Este fato está refletido mais fortemente nos muitos documentários veiculados por canais fechados onde uma simples menção ao nome do “faraó-menino” está sendo obrigatória. Indo de acordo com a moda da “Tutmania” é onde entra o documentário “O funeral de Tutancâmon” (“Burying King Tut” no original, ano de lançamento 2009) da National Geographic.

Embora realizado para a National Geographic Channel, o documentário em si é quase um fiasco, mas não no que diz respeito ao trabalho de alguns dos pesquisadores presentes, mas da forma como a história foi construída e organizada. O desconhecimento de aspectos da egiptologia por parte da produção da fita é visível a cada momento, principalmente nas montagens ligadas ao historiador Nicholas Reeves (Egiptólogo e autor de “The Conplete Tutankhamun”, sem tradução para o Brasil) que por sinal foi mal encaixado: suas falas além de polêmicas excluem o público de uma grande discussão que existe não só por trás deste, mas de outros documentários agraciados por sua participação, como, por exemplo, a sua teoria de que os pequenos esquifes que guardam as vísceras de Tutankhamon (VER IMAGEM) na verdade pertenciam a Nefertiti. De fato estas imagens não possuem o nome de Tutankhamon, e sim de Smenkará (Smenkaré), porém Reeves afirma categoricamente que neles está o nome da rainha Nefertiti, mas isto devido a uma de suas teorias desenvolvidas há alguns anos onde ele defende que Smenkará, que foi co-regente de Akhenaton e esposo de Meriaton (filha mais velha da rainha), na verdade seria Nefertiti, já que a governante possuía o mesmo sobrenome desta incógnita figura.

Mini esquife que apesar de ter guardado as vísceras de Tutankhamon é nominado em nome de seu antecessor Smenkara. Fonte da imagem: JAMES, Henry. Tutancâmon (Tradução de Francisco Manhães). 1ª Edição. Barcelona: Editora Folio, 2005. P. 109.

Reeves sugere também que os vasos canopos (VER IMAGEM) não eram verdadeiramente de Tutankhamon porque os rostos presentes nas peças são femininos e ele ainda aponta que seriam também de Nefertiti. Esta é a hipótese dele e que particularmente não é possível concordar plenamente uma vez que : (a) em primeiro lugar ele está sendo muito simplista ao sugerir que “por se tratar de imagens femininas” automaticamente não foram encomendadas por Tutankhamon. Para levantar hipóteses poderiam ser a representação mágica das deusas que protegem as suas vísceras e que estão presentes na arca que guardavam outrora estes canopos ou até mesmo uma representação da sua esposa, a Ankhesenamon, que na tumba toma o papel de deusas funerárias ao conduzir em vários momentos o marido no além túmulo. (b) Em segundo Tutankhamon era um rapaz cuja morfologia craniana é grácil, ele possuía feições finas. O canopo possui um rosto um pouco andrógeno e apontar justamente para uma mulher pode acabar sendo mais uma vez simplista, mas, apesar de ser uma possibilidade, ainda sim a face nos canopos não parecem muito com ele, assim é algo que fica em aberto.

Outros apontamentos de Reeves são sobre a possibilidade de que Akhenaton também fosse o dono de algumas das peças encontradas, a exemplo do peitoral com a imagem de um abutre que ele suspeita ser deste rei devido a um título deste faraó presente na peça: “bom soberano, senhor das duas terras”. Caso este artefato tenha sido de fato pertencente a Akhenaton só o seria nos primeiros anos do seu reinado, já que nele está presente uma menção a deusa Nut (JAMES, 2005), que foi uma das muitas divindades excluídas do círculos de rituais anuais e cotidianos durante o ápice do reinado deste faraó.

Face dos canopos de Tutanlhamon. Foto: Acervo National Geographic. Kenneth Garrett. 1995.

Parte da teoria de Reeves – de que algumas das peças da tumba originalmente não são de Tutankhamon – tem como base a presença do “símbolo solar” nos aparelhos funerários, a exemplo dos férreos que guardavam os sarcófagos. Para o egiptólogo estes símbolos são exclusivos de Akhenaton, porém sabemos que até certo limite Tutankhamon seguia uma ideologia atoniana. Sobre esta situação é importante citar uma das falhas do documentário no momento em que Reeves está assinalando um dos “símbolos solares”, na cena o pesquisador está apontando para os hieróglifos que significam “eternidade”, o que não justifica de forma alguma ser uma assinatura atoniana. Reeves é um egiptólogo experiente e creio que não cometeria um erro tão primário, assim, imagino que foi um erro da edição da fita. O egiptólogo também aponta para a possibilidade de que um dos sarcófagos de Tutankhamon onde o rei é representado com um toucado cuja ponta lembra um motivo trançado seria de Akhenaton. Esta é outra idéia que não é possível sair do campo das hipóteses, uma vez que padroniza os toucados como se fossem uma identidade para determinados indivíduos. Um exemplo é uma antiga discussão sobre o sarcófago do indivíduo da KV-55 o qual já foi levantada a conjetura de que deveria ser da rainha Tiye, uma vez que o toucado do caixão lembrava as perucas que a soberana utilizava em vida. Sendo desta forma, o caixão seria também de Kiya, Nefertiti e assim por diante?

Máscara mortuária de Tutankhamon (Sem o tradicional cavanhaque). Foto: Acervo Griffith Institute, University of Oxford. Harry Burton. Disponível em < http://www.griffithinstituteprints.com/image/433271/harry-burton-the-gold-mask-of-tutankhamun-3-4-view > Acesso em 26 de setembro de 2011.

Outra crença de Reeves é de que a máscara funerária (VER IMAGEM) também não foi feita a princípio para Tutankhamon. Esta é mais uma história particular deste pesquisador: quando “O funeral de Tutancâmon” foi lançado pela primeira vez no Brasil fiquei impressionada em ver que desta vez Nicholas Reeves estava considerando que o rosto pertencia a Tutankhamon, porém não o toucado, já que anteriormente ele acreditava que a máscara também seria de Nefertiti (usando a mesma teoria dos canopos). Com este documentário ele mudou a abordagem, mas não deixa de ser inconsistente e reducionista já que desta vez argumenta que o toucado não seria do Tutankhamon pelo fato das pedras azuis da máscara em si e do toucado serem de materiais diferentes. Para aqueles que não assistiram ao documentário ou para quem não entendeu onde Reeves queria chegar é que provavelmente os rostos das máscaras mortuárias reais eram feitas separadamente do toucado em si e eram reunidos posteriormente. O problema da hipótese de Reeves é que ele desconsidera que os objetos poderiam ter sido encomendados em épocas diferentes ou feitos por ourives diferentes, não precisando necessariamente ter pertencido à outra pessoa e o responsável pela encomenda da tumba (no caso da proposta da fita ser este o Ay, vizir de Tutankhamon) ter simplesmente “por falta de tempo” resolvido saquear bens de terceiros, embora esta seja a idéia do documentário já que a muito tem sido impensável para alguns egiptólogos e amadores a possibilidade de que Tutankhamon, praticamente uma criança, ao menos para os nossos padrões ocidentais, ter tido tão pouco tempo para arrecadar tantos artefatos preciosos e de manufatura tão complexa. Ignora-se que Tutankhamon já era adulto a partir do momento que fora coroado e que o nosso conceito de infância é atual.

Um dos momentos mais interessantes do documentário, mas que deixou muito a desejar devido à metodologia aplicada, é quando o arqueólogo Denys Stocks (Arqueólogo Experimental) se questiona se o sarcófago de quartzito poderia ser feito em 70 dias (período tido como base para os preparativos funerários). Na época de Tutankhamon já existiam ferramentas de bronze que ilusoriamente adiantaria o trabalho, no caso do documentário eles utilizaram uma de pedra, que se mostrou mais eficiente. Com a ajuda do artista Dave Willett, Stocks chega à conclusão de que, a partir de uma estimativa com o auxílio de cálculos, uma pessoa sozinha levaria 06 anos para concluir todo o sarcófago, mas como estes trabalhos eram feitos em equipe (de 08 a 10 trabalhando, de acordo com a estimativa de Willett) levariam 08 meses (isto sem contar o tempo para se escavar o interior do bloco de quartzito que de acordo com Stocks levariam 18 meses), o que é inconcebível para quem tinha pouco mais de dois meses para sepultar o faraó. A falha no quesito metodológico se dá devido ao artista ter feito somente um rosto e só uma vez, esperando comparar este experimento com a técnica de pessoas já especializadas no assunto. O experimento foi válido, mas no sentido de Arqueologia Experimental possui falhas. Para sustentar a hipótese de que o sarcófago não teria terminado a tempo entra na fita Marianne Eaton-Krauss (Autora de “The Sarcophagus in the Tomb of Tutankhamun“, sem tradução para o Brasil) apontando que algumas das deusas que protegem o sarcófago estão incompletas já que enquanto partes delas estão entalhadas outras estão simplesmente pintadas. Marianne também aponta a possibilidade de que o sarcófago poderia ter sido reaproveitado, ou seja, não foi feito originalmente para Tutankhamon, uma vez que existem incoerências nos entalhamentos, a exemplo de hieróglifos que parecem terem sido suplantados ou ocultados pelas asas das deusas. Outra sugestão de que o funeral de Tutankhamon teria ocorrido às pressas é o fato das imagens da sua tumba terem sido feitas tão grandes (VEJA O VÍDEO NO FINAL DO TEXTO), na espera que sobrassem menos espaços para se ilustrar. Porém, imagens de tal tamanho não relatam nada incomum, a tumba da rainha Nefertari, conhecida por seu primor artístico, possuem imagens enormes, assim como a de Seti I, e ambos tiveram anos de vida para planejar seu sepulcro.

Salima Ikram no documentário “O funeral de Tutancâmon”. Captura da imagem: Márcia Jamille Costa.

A participação mais interessante parte da Dra. Salima Ikram onde vemos uma das raras vezes em que ela opina sobre o estado do corpo de Tutankhamon. Ikram é amplamente conhecida entre egiptólogos devido ao projeto Múmias de Animais e seus experimentos com conservação de corpos de animais. De acordo com a Dra. a múmia de Tutankhamon parece ter sofrido, aparentemente, uma mumificação deficiente e que antes do processo de conservação o corpo já teria começado a se deteriorar. Outro detalhe apontado é a ambulância de óleo e resina que acabou carbonizando a pele do faraó, a quantidade é tanta que explicaria a “ausência” do coração do rapaz nas chapas de Raios-X, uma vez que a substancia estaria ocultando o órgão. É importante citar que esta quantia excessiva já tinha sido notada quando a múmia de Tutankhamon começou a ser desenfaixada logo após a abertura do sarcófago. Tamanho foi o trabalho do médico responsável pela remoção que ele teve que esquentá-la para tentar desgrudar os artefatos do corpo do rei. Um detalhe importante (e que teria sido interessante se abordado no documentário) é que sabemos de histórias de faraós embebidos em resina através de um texto de relatos de ladrões de tumbas onde o saqueador explica que para soltar as jóias do corpo do falecido precisou atear fogo na múmia, desgrudando assim a resina.

A proposta do documentário é mostrar que Tutankhamon, que morreu jovem e sem filhos vivos, necessitava urgentemente de um herdeiro para o seu trono, desencadeando assim uma corrida pela sucessão por parte de Ay, seu até então vizir que, aproveitando-se da ausência do general do rei, Horemheb, se proclama faraó (a despeito dos inúteis esforços da rainha viúva, Ankhesenamon) se utilizando das mais variadas artimanhas para sepultar Tutankhamon o mais breve o quanto fosse possível. Seguindo este pensamento o Dr Kent R. Weeks (Diretor do Theban Mapping Project) e Dr Peter J. Brand (Egiptólogo da Universidade de Menphis) acreditam que a KV-62 não pertencia primordialmente a Tutankhamon, e sim a KV-23, onde Ay foi sepultado. Outra linha que o documentário segue é de que Tutankhamon teria transformado Horemheb em seu herdeiro, embora isto possa não ter sido verdade, já que Horemheb armou várias justificativas para estar no trono, se declarando, inclusive, herdeiro direto de Amenhotep III, avô de Tutankhamon, e excluindo tanto o seu jovem falecido amo, assim como Ay, Akhenaton (filho de Amenhotep III) e Smenkará da linhagem real.

 

 

A fita possui vários pontos negativos que embora atrativo para um espectador comum não será visto com bons olhos pela academia (a exemplo do fato do Dr. Zahi Hawass entrar no férreo de ouro, evento que poderia ser desastroso para o artefato). Este é um material relativamente ruim onde poucos aspectos podem salvá-lo, como a participação da Dra. Salima Ikram. Não ignoro o fato (ou possibilidade) de alguns dos artefatos da KV-62 terem sido “terceirizados”, mas pela forma como o documentário foi conduzido é difícil poder se levar muita coisa a sério, principalmente porque “O funeral de Tutancâmon” parece ser mais um dos afãs frutos da “moda Rei-Tut” que andam enchendo o currículo de vários pesquisadores. No final das contas, quando observamos as metodologias aplicadas pela maioria dos convidados da fita o documentário em si acaba não possuindo muito de substancial no final das contas.

Veja também:

Página Oficial do documentário: Burying King Tut: < http://natgeotv.com/asia/burying-king-tut >, Acesso 17/09/2011.

JAMES, Henry. Tutancâmon (Tradução de Francisco Manhães). 1ª Edição. Barcelona: Editora Folio, 2005.