O namoro no Egito Antigo

Por Márcia Jamille | @MJamille | Instagram

O amor é um sentimento de carinho e afeto amplamente difundido na nossa cultura atual, sendo homenageado todos os anos, em diferentes países, e usado como uma ferramenta de consumo capitalista. Arqueologicamente falando, no Egito temos vários exemplos deste tipo de sentimento sendo demonstrado em palavras ou imagens parietais tumulares ou em artefatos domésticos. Para este último caso temos como exemplos alguns artefatos provenientes da KV-62, tumba do faraó Tutankhamon, que viveu no Novo Império, durante a 18ª Dinastia.

Tutankhamon morreu com cerca de 18 e 19 anos e foi sepultado no Vale dos Reis. Seu túmulo foi encontrado praticamente intacto em 1922 pelo arqueólogo inglês Howard Carter, que catalogou vários objetos em que o jovem falecido aparecia ao lado da sua única esposa, Ankhesenamon. As imagens refletem um carinho mutuo; em alguns momentos vemos o faraó caçando na companhia da sua esposa que hora está observando a caça ser abatida, hora indica o alvo para o marido. Ela lhe oferece flores e em outra situação ele derrama um líquido em uma das mãos dela enquanto Ankhesenamon descansa um braço em seu colo.

Tutankhamon e Ankhesenamon (STROUHAL, 2007, p.80).

Estas demonstrações de afeto entre membros da realeza não eram comuns, em verdade exemplos deste tipo ficaram populares durante o Período Amarniano, que compreende o reinado do faraó Akhenaton até o reinado de Tutankhamon (alguns acadêmicos sugerem o reinado de Ay). Nos demais períodos temos demonstrações mais formais, onde o casal é apresentando realizando trabalhos ou precedendo um ao outro em iconografias funerárias, contudo a cultura material escrita nos traz alguns poemas românticos (BUNSON, 2002), especialmente durante o Novo Império, como o exemplo a seguir:

O amor dos meus desejos

Está na outra margem.

Estamos separados por águas tumultuosas

Um crocodilo nos ameaça

Nas águas pouco profundas.

Deslizo no rio e caminho para atravessá-lo.

Não temo a profundidade

Nem temo os crocodilos.

O rio é para mim como terra seca.

O amor me dá forças,

O amor é meu amuleto.

Vejo meu coração ansioso,

Ela está diante de mim (STROUHAL, 2007, p. 39-40).

Casal que viveu durante a 18ª dinastia (STROUHAL, 2007, p.162).

Casal que viveu na 4ª ou 5ª dinastia (STROUHAL, 2007, p.246).

Era comum chamar a pessoa amada de “irmã” ou “irmão”, o que não significava necessariamente um parentesco, mas uma forma de mostrar carinho e proximidade com a pessoa querida [1] (WILFONG, 2010). Outra forma de evidenciar carinho afetivo e/ou proximidade sexual era com troca de beijos nos lábios, como também a “troca de hálito”, que era a ação de esfregar um nariz no outro (STROUHAL, 2007). Já anatomicamente falando, como o coração era tido como o órgão responsável não só por guardar as boas e más ações, como também os sentimentos, os apaixonados em textos frequentemente pediam pelo o coração do companheiro para simbolizar uma ligação romântica intensa.

Ankhesenamon e Tutankhamon (George Rainbird/Robert Harding Picture Library em STUART, 1979, p. 89).

Para o amor romântico e sexual existia uma divindade patrocinadora, Hathor, também chamada de “Deusa de Ouro” e a quem o casal suplicava por uma vida a dois feliz. Ela era uma deusa bastante popular, com uma profunda associação com o Sol, padroeira do céu e do deserto. Sua importância era tamanha que tanto era evocada para proteger as pessoas contra os perigos escondidos na noite, como para proteger os indivíduos falecidos durante sua viagem pelo o além-vida (BUNSON, 2002; STROUHAL, 2007; GRALHA; 2012). As suplicas a ela revelam os anseios do amor e a necessidade de ficar com a pessoa que tanto deseja:

Se minha mãe soubesse o que passa em meu coração (…). Ó, Deusa de Ouro, põe isso no coração dela e então correrei ao meu irmão, eu o beijarei na frente dos que o cercam (…) (ARAÚJO, 2000, p. 307 apud BALTAZAE e COELHO, 2012, p. 168).

Sabemos também que não era incomum o sexo antes do casamento e isso fica nítido em alguns poemas amorosos, assim como os jogos de sedução e o flerte (STROUHAL, 2007), mas nem tudo era felicidade, a desilusão amorosa e o amor não correspondido também se manifesta na cultura material escrita:

Ele não sabe o desejo que tenho em tomá-lo nos braços, (…), Ó, meu irmão, queria ser dada a ti pela Deusa de Ouro das mulheres (ARAÚJO, 2000, p. 305 apud BALTAZAE e COELHO, 2012, p. 170).

Ou:

Meu olhar voltou-se para a porta do jardim (…). Olhos na estrada, ouvidos atentos, espero por aquele que me despreza (BALTAZAE e COELHO, 2012, p. 171).

Observando esses exemplos o que podemos notar é que esses indivíduos que viveram durante o faraônico não se diferiam muito de nós, principalmente ao mostrar sua estima pelo (a) companheiro (a) publicamente; Rememoremos o faraó Ramsés II, que designava a esposa Nefertari como “Dama adorável”, “Bela de rosto” e “Doce amor” (O’CONNOR, 2007). Por fim, a experiencia que podemos resgatar deste passado tão remoto é que independente do período e do que era ou não aceitável amar [2] a busca pelo o amor poderia passar por percalços, dificuldades e inseguranças, como ocorreria com qualquer pessoa na atualidade.

Referências bibliográficas:

BUNSON, Margaret R. Encyclopedia of Ancient Egypt. New York: Facts On File, 2002.

GRALHA, Julio. Senhora da casa, divindade e faraó as várias imagens da mulher do Antigo Egito. In: CANDIDO, Maria Regina [org.]. Mulheres na Antiguidade: Novas Perspectivas e Abordagens. Rio de Janeiro: UERJ/NEA; Gráfica e Editora-DG ltda, 2012.

O’CONNOR, David; FREED, Rita; KITCHEN, Kenneth. Ramsés II (Tradução de Francisco Manhães, Marcelo Neves). Barcelona: Fólio, 2007.

STROUHAL, Eugen. A vida no Antigo Egito (Tradução de Iara Freiberg, Francisco Manhães, Marcelo Neves). Barcelona: Folio, 2007.

STUART, Gene. S. Secrets from the past. National Geographic Society, 1979.


[1] Isso valia também para pessoas que eram grandes amigas ou que se esperava que cultivassem uma boa amizade.

[2] Muitas vezes e isto vale para a atualidade, a escolha de com quem é permitido se relacionar passa por um julgamento da sociedade, ou seja, é cultural, ignorando os anseios reais do individuo.