Ser pai no Egito Antigo

Por Márcia Jamille | @MJamille | Instagram

Quando comecei a escrever este texto não fiquei surpresa por não encontrar nenhum artigo falando especificamente sobre a paternidade, no sentido de afetividade (zelo, amor por seus filhos) na antiguidade egípcia [1], porque eu sempre tive a impressão de que para muitos acadêmicos o ato de cuidar de crianças estivesse fora da enseada masculina ou que nem sequer ela fosse digna de ser estudada pela Egiptologia. Contudo, quando procuramos sobre a paternidade no sentido de virilidade o assunto torna-se digno de citação e isso é uma grande infelicidade porque estamos perdendo a oportunidade de observar as famílias egípcias de um ponto de vista amplo.

Pai com as suas crianças. Tumba de Inherkha. 20ª Dinastia. Deir el-Medina. STROUHAL, Eugen. A vida no Antigo Egito (Tradução de Iara Freiberg, Francisco Manhães, Marcelo Neves). Barcelona: Folio, 2007. p.25

Não sabemos bem qual era a situação social da paternidade ao longo do faraônico. Entendemos que o cuidado dos infantes até certa idade era praticamente a responsabilidade das mães e que essas tinham grande papel na identidade da criança em meio a sociedade, afinal, sabemos, por exemplo, que a criança, independente do seu sexo biológico, usualmente era relacionada, mesmo na idade adulta, com a mãe e raramente com o pai (DESPLANCQUES, 2011; COELHO; BALTHAZAR, 2012). Esse posicionamento era estendido ao âmbito funerário, onde a crença ditava que a progenitora doava parte do seu coração para o rebento no momento da gestação (STROUHAL, 2007).

Da parte do pai a crença ditava que a criança herdava os ossos, mas a importância não parava por aí: no faraônico já se tinha o órgão sexual masculino como o recipiente do mu, o esperma nos termos de hoje, onde estava a essência do bebê, o qual, para desenvolver, precisava ser depositado em uma mulher e é aí onde alguns acadêmicos acreditam que veio a perspectiva da criação egípcia ter sido iniciada por uma divindade masculina e não feminina (STROUHAL, 2007; WILFONG, 2010). Uma proposta aceitável, já que o óvulo não era conhecido, mas que é extremamente simplista, necessitando de mais debates.

Seti I e seu filho Ramsés II retratados no Templo de Abidos. 19ª Dinastia. O’CONNOR, David; FORBES, Dennis; LEHNER, Mark (a). Grandes civilizações do passado: Terra de faraós (Tradução de Francisco Manhães). Barcelona: Folio, 2007. p. 14

Saindo do campo espiritual, os registros escritos nos dão uma imagem formal da educação dada de um pai para o seu filho, a exemplo dos “Livros das Instruções”, “Compendio de Instruções pelo Nobre e Real Príncipe Hordjedef” e a “Instrução de Ptahotep”, onde é apresentado o personagem do pai, que de forma ríspida passa concelhos de cunho moral e ético para o seu herdeiro (STROUHAL, 2007), mas saindo do campo da escrita, que usualmente partia do ponto de vista idealizado pela a elite, e observando os registros arqueológicos é possível observar um mundo muito mais amplo onde o amor paternal e sua preocupação com a educação de suas filhas e filhos demonstram um teor mais humano e menos protocolar.

Akhenaton brinca com uma de suas filhas. 18ª Dinastia. Amarna. STROUHAL, Eugen. A vida no Antigo Egito (Tradução de Iara Freiberg, Francisco Manhães, Marcelo Neves). Barcelona: Folio, 2007. p. 56.

A iconografia, ao lado de alguns textos literários ao estilo das instruções apresentadas acima, costumavam também retratar um ambiente formal e muitas vezes idealizado, mas em alguns momentos podemos ver exemplos de amor paternal, especialmente durante o Período Amarniano, quando vemos o faraó Akhenaton segurar suas filhas, acariciá-las e até brincar. Outro é Tutankhamon: ele nunca foi retratado cuidando de nenhuma criança, mas em seu túmulo foram encontrados dois corpos pequenos de bebês falecidos provavelmente um antes de nascer e o outro ligeiramente após o parto. Acredita-se que ambos sejam meninas e suas filhas. Independente da verdade o fato é que estas crianças foram sepultadas justamente no espaço do sepulcro reservado para guardar os órgãos internos do próprio Tutankhamon.

Se olharmos mais atentamente poderemos encontrar muito mais exemplos desta ligação mais afetuosa entre os pais e seus filhos, sejam biológicos ou adotivos. A Arqueologia, especialmente a latino-americana, está aí para isso e precisamos aproveitar este momento em que ela está cada vez mais aberta a entender o passado de uma perspectiva mais ampla para começar a levantar estas questões.

Referências:

BALTHAZAR, G. S.; COELHO, l. C. “As múltiplas sensibilidades do feminino na literatura egípcia do Reino Novo (c. 1550-1070 a.c.)”. In: CANDIDO, M. R. (Ed). Mulheres na Antiguidade: Novas Perspectivas e Abordagens. Rio de Janeiro: UERJ/NEA; Gráfica e Editora-DG Ltda, 2012.

DESPLANCQUES, Sophie. Egito Antigo (Tradução de Paulo Neves). Porto alegre: L&PM, 2011.

GRALHA, J. “Senhora da casa, divindade e faraó as várias imagens da mulher do Antigo Egito”. In: CANDIDO, M. R. (Ed). Mulheres na Antiguidade: Novas Perspectivas e Abordagens. Rio de Janeiro: UERJ/NEA; Gráfica e Editora-DG Ltda, 2012.

STROUHAL, Eugen. A vida no Antigo Egito (Tradução de Iara Freiberg, Francisco Manhães, Marcelo Neves). Barcelona: Folio, 2007.

WILFONG, T. G. “Gender in Ancient Egypt”. In: WENDRICH, W. (Ed). Blackwell Studies in Global Archaeology: Egyptian Archaeology. New Jersey: Wiley-Blackwell, 2010.