Descobertas em Saqqara: o que sabemos sobre os 100 sarcófagos lacrados?

Por Márcia Jamille | @MJamille | Instagram

Sob um sol escaldante no final do ano de 2020, mais especificamente em 14 de novembro, o Ministério de Turismo e Antiguidades do Egito reuniu um pomposo grupo de jornalistas para anunciar aquela que estava sendo definida como a “maior descoberta arqueológica” do ano: o descobrimento em Saqqara de mais de 100 sarcófagos em ótimo estado de conservação… E com o bônus de que ainda estavam lacrados. Essa história eu contei nesse vídeo do Arqueologia pelo Mundo:

Inclusive, durante a conferência de imprensa, a equipe separou uma das múmias encontradas para realizar um exame de raio-x ali mesmo, em frente a todos, para mostrar que na atualidade não existe a necessidade de se exumar (desenfaixar) múmias. Uma clara resposta aos boatos que rondaram a internet naquela época, de que os arqueólogos estavam “perturbando” os mortos. 

Porém, não foram dados muitos detalhes sobre essa descoberta, afinal, aquela conferência de imprensa tinha um outro intuito, que era o de anunciar um documentário que estava sendo produzido para o Smithsonian Channel. Ou seja, basicamente o que foi mostrado na conferência era literalmente um teaser do programa, com direito a um trailer do show rodando ao final da amostra, o que foi, de certa maneira, frustrante. 

Mas, isso meio que acabou explicando o porquê do uso insistente do termo “maior descoberta arqueológica de 2020”. O que pareceu é que isso foi uma tentativa de chamar atenção para o programa.

Não custa nada rememorar que falar que “essa” ou “aquela” descoberta arqueológica é a “maior”, “mais importante”, acaba, por vezes, dando um “valor” não raramente quantitativo para pesquisas de arqueologia (ou seja, quando mais antigo ou quanto mais coisas encontradas, melhor), o que não é legal. 

De qualquer forma, a espera chegou ao fim, já que recentemente saiu no Smithsonian Magazine um artigo dando detalhes do que foi encontrado. Além da estreia da série documental não só nos EUA, como aqui no Brasil, no canal Smithsonian Channel*. 

Confira os principais detalhes desta pesquisa. 

O local da descoberta:

O local onde foi feita a descoberta fica nas proximidades da pirâmide de Djoser, em Saqqara**, famosa não só por sua antiguidade – ela foi construída há mais de 4 mil anos -, mas por ter sido o primeiro edifício em pedra construído na África e possivelmente no restante do mundo, além de ser a primeira pirâmide do Egito. 

E foi não muito longe dela onde no final de 2020 o arqueólogo egípcio Mohammed Youssef adentrou em um poço funerário fechado há mais de 2.000 anos e lá se deparou com a imagem de um deus egípcio, o Ptah- Sokar-Osíris. Para quem não está habituado com os nomes de antigos deuses, Ptah-Sokar- Osíris pode soar como algo estranho, mas essa era uma divindade bastante respeitada durante a antiguidade egípcia. Ele surgiu  de um sincretismo entre os deuses Osíris, Sokar e Ptah e era associado com a criação e a morte.

Restaurador trabalha na estátua do deus Ptah-Sokar-Osiris. Foto: Roger Anis

Mas, esta estátua não estava sozinha lá no poço funerário, nos arredores estavam outras imagens de madeira e máscaras mortuárias douradas. Isso levou os arqueólogos da equipe a achar que tinham se deparado com uma tumba de uma família. Porém, estavam todos enganados. Eles, como perceberam mais tarde, estavam diante de um depósito de múmias: o que foi descoberto nesse poço funerário foram dezenas de ataúdes (o que aqui no Brasil chamamos de “sarcófago”), ainda com corpos dentro, empilhados uns sobre os outros, indo até o teto. Até o chão estava coberto por restos de linho de mumificação e ossos humanos! Outro detalhe curioso é que todos esses ataúdes de madeira estavam sobre quatro grandes sarcófagos de pedra.

Pesquisador analisa um dos ataúdes de madeira encontrados. Foto:Roger Anis
Centenas de ataúdes foram endontrados dentro de um poço funerário. Os arqueólogos ainda não sabem a extenção da descoberta. Foto: Roger Anis

Uma “megatumba”: 

Esse poço funerário, que hoje sabemos que trata-se de uma entrada para câmaras funerárias, recebeu o apelido de “megatumba”, um nome bem apropriado para esses tipos de sepultamentos numerosos que têm sido encontrados nos últimos meses em Saqqara. 

Contudo, esse sepultamento aqui se difere dos demais por conta de um enorme detalhe: o número de ataúdes. Não são 20 ou 50, mas dentro dessa megatumba foram contados mais de 100 caixões e é possível que existam mais.

No final do ano passado, quando ainda não possuíamos muitas informações sobre a descoberta, eu tinha especulado que os arqueólogos poderiam ter encontrado os ataúdes em locais separados (mas ainda estando na área do sítio arqueológico) e somado as descobertas para criar mais impacto na imprensa, mas eu estava enganada.

Após o descobrimento, um laboratório foi montado no local e retiraram o primeiro caixão visível, que estava selado com resina preta. Dentro dele estava um segundo caixão, que possuía uma máscara mortuária folheada a ouro e com os típicos olhos delineados. Já o corpo do caixão é de cor azul, verde e vermelho, com motivos florais e uma representação da deusa céu, Nut, que está com asas estendidas.

E o ataúde também possui hieróglifos, o que deu informações valiosas sobre a pessoa que ainda descansa em seu interior: Trata-se de uma mulher que viveu no início do Período Tardio, entre os séculos VI ou VII, chamada Ta-Gemi-En-Aset.

Seu nome, de acordo com Campbell Price, curador do acervo do Egito Antigo e Sudão do Museu de Manchester (Inglaterra), significa “Aquela que foi encontrada por Ísis”.

Ainda, de acordo com as inscrições, sua mãe era uma cantora e acredita-se que, devido a presença da imagem de um sistro e um chocalho usado em templos, a Ta-Gemi-En-Aset pode ter pertencido a um culto à deusa Ísis.

Outra história do passado também foi revelada por um outro caixão, que dessa vez pertence a um homem. Ele também possuía uma máscara mortuária folheada a ouro, só que aqui o falecido é retratado com uma espessa barba. Seu nome era Psamético, uma possível homenagem aos faraós de nome “Psamético” que reinaram naquele período. 

A princípio se achou que Psamético e Ta-Gemi-En-Aset eram parentes, já que os nomes dos seus pais eram iguais (se chamando Hórus), mas as mães tinham nomes diferentes. É possível que fossem meio-irmãos? Sim, mas quando a equipe de arqueologia pesquisou mais a fundo observou que talvez não fosse esse o caso.

A questão é que o poço funerário levava a uma segunda caverna também cheia de caixões de diferentes tamanhos e estilos, além de entulhos de antigos desmoronamentos. 

Ou seja, essa não era uma tumba familiar, mas um tipo de sepultamento coletivo, algo que não era incomum no Egito Antigo, porém a diferença aqui é que temos uma centena de corpos, algo que não tinha sido visto até então. 

Vários restos humanos esqueletizados foram encontrados no local. Foto: Roger Anis

Mas, porque essas megatumbas existem? E por que estão sendo encontradas justamente em Saqqara?

Durante o Reino Antigo, as elites prezavam por enterros mais privativos, mas, no Período Tardio, 2.000 anos depois, a elite não viu problemas em sepulturas coletivas e lotadas. Isso se deu possivelmente por conta de mudanças políticas ocorridas em meados de 1000 a.E.C, quando o governo dos reis enfrentavam instabilidades durante o que chamamos de Terceiro Período Intermediário. Porém, quando Psamético I assumiu o trono e estabeleceu a ordem, a prática dos sepultamentos coletivos permaneceu. A essa altura não era mais uma necessidade econômica, era algo cultural. 

Por outro lado, isso criou um “negócio dos mortos”, toda uma lucrativa operação comercial, resultando em um mercado de enterros onde a hierarquia estava definindo quão próximo das pirâmides de Saqqara o indivíduo teria direito de estar por toda a eternidade. Já os mais pobres eram relegados à solidão do deserto, enterrados diretamente na areia. Entretanto, aqueles que estavam no meio termo, entre a elite e os desafortunados, tinham como opção os poços funerários compartilhados. Esta era a possibilidade para quem tinha recursos, mas não o bastante para um sepultamento privado próximo de alguma pirâmide.

Por outro lado, isso era algo muito vantajoso para os agentes funerários da época, os sacerdotes encarregados dos enterros, já que não precisavam cavar mais e mais poços funerários, colocando neles o máximo de caixões que pudessem, podendo sempre amontoar os falecidos uns sobre os outros.

Olhando sob a terra:

Atualmente os arqueólogos têm utilizado na área técnicas de geofísica, sonares de varredura lateral, para ver se é possível localizar mais sepulturas sob o solo. Mas, o que foi encontrado superou as expectativas: o arqueólogo Campbell Price identificou restos de vários templos ao longo da rota processional para o Serapeum (necrópole animal dedicada ao Boi Ápis) de Saqqara. Porém, essa técnica ainda não possibilita ler nomes em artefatos ou paredes enterradas, por isso que escavações arqueológicas têm sido realizadas. Até porque os pesquisadores querem entender o lado “social”dos antigos enterros: quem eram aquelas pessoas? Por que foram enterradas lá? Quais suas crenças? Que tipo de gente trabalhava nos templos? Qual era a dinâmica social?

São muitas as perguntas, mas, ao menos uma coisa os pesquisadores já sabem: que esses cemitérios não eram lugares silenciosos e sinistros, mas centros econômicos vibrantes, onde o caminho para a eternidade estava disponível, ao menos dependendo do quanto você pudesse pagar.

Fonte:

Inside the tombs of Saqqara. Disponível em < https://www.smithsonianmag.com/history/inside-tombs-saqqara-180977932/https://www.smithsonianmag.com/history/inside-tombs-saqqara-180977932/ >. Acesso em 16 de julho de 2021. 

Dicas de leitura:

“Arqueologia”, de Pedro Paulo Funari: https://amzn.to/3yoAE3N

“História do Egito Antigo”, de Nicolas Grimal: https://amzn.to/3frWcW1

“Egito Antigo”, de Sophie Desplancques: https://amzn.to/2Vq8yXm 

*Todos os detalhes dessa descoberta foram mostradas no documentário “Tomb Hunters”, uma série com quatro capítulos do Smithsonian Channel.

** Foi em Saqqara onde em 2018 a tumba de um sacerdote egípcio chamado Wahtye foi descoberta. Ele, inclusive, virou “figura principal” do documentário “Os Segredos de Saqqara” da Netflix (2020).