Por Márcia Jamille Costa | @MJamille | Instagram
“O som de um indivíduo mumificado de 3000 anos de idade foi reproduzido com precisão com um tipo de som de vogal”, é assim que começa o artigo que revelou ao mundo que uma equipe de acadêmicos de diferentes universidades (a maioria advindas do Reino Unido) teria reproduzido a voz de um sacerdote egípcio [1]. O nome deste homem da antiguidade é Nesyamun e ele viveu durante o reinado do faraó Ramsés XI, que por sua vez reinou por volta do início do século 11 aC.
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A múmia de Nesyamun, que atualmente está no Leeds City Museum, foi desembrulhada em 1824 e trabalhos subsequentes revelaram que ele estava na casa dos 50 anos quando morreu. Alguns chegaram a sugerir que ele teria falecido por estrangulamento, mas hoje acredita-se que ele padeceu por conta de uma reação alérgica, possivelmente resultado de uma picada de inseto na língua [1].
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De acordo com o texto, a partir dos dados obtidos de uma tomografia computadorizada, foram conseguidas as medições exatas do trato vocal (que compreende as cavidades faríngea, oral e nasal) do falecido. Foi assim que surgiu a ideia de se realizar uma reprodução do trato em 3D e tentar ouvir como seria a voz de um sacerdote egípcio falecido [1].
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Como justificativa para o trabalho, os pesquisadores afirmam que a proposta da pesquisa é dar oportunidade de levar as pessoas a se envolver com o passado. Ainda de acordo com o artigo, questões éticas foram levantadas pela equipe, assim como seus possíveis resultados para o patrimônio. Os pesquisadores concluíram que os benefícios potenciais superavam as preocupações, principalmente porque “as próprias palavras de Nesyamun expressavam seu desejo de ‘falar de novo’” [1].
“Falar de novo” faz parte da tradição religiosa egípcia e tem a ver com o Ritual de Abertura da Boca. Em tal ritual a boca do morto era aberta magicamente para que ele pudesse comer novamente, respirar e falar. Usar esta antiga tradição como justificativa para uma pesquisa científica que se propõe ser séria não é válida, até porque, se for para seguir os desejos de Nesyamun certamente ele não desejaria que seu corpo estivesse na Inglaterra sendo exposto para estranhos, mas em sua tumba no Egito.
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Outra parte problemática desta pesquisa é que eles estão usando o corpo de alguém que está morto há 3000 anos e que passou por uma mumificação severa (que é a egípcia) onde músculos e órgãos, dentre eles a língua e os pulmões (este último foi removido do corpo durante a mumificação) viraram um amontoado de carne enrugada e seca. Mesmo com um tomógrafo não é possível ter exatidão para saber como eram estas partes do corpo quando o indivíduo estava vivo. Só este detalhe já tornaria irreal a frase de abertura do artigo, “O som de um indivíduo mumificado (…) reproduzido com precisão”.
Inclusive o David Howard, um dos acadêmicos por trás do projeto, esclareceu para a CNN que “Na verdade, não é um som que ele provavelmente teria feito na prática porque a maior parte da sua língua não existe” [2].
Não bastassem estes problemas iniciais, até a forma como o som foi “resgatado” é controverso. A equipe utilizou uma ferramenta de síntese de fala chamada Vocal Tract Organ [3], que reconstrói o som que sairia de um trato vocal. Basicamente o trato vocal impresso em 3D de Nesyamun foi conectado a um alto-falante e os pesquisadores emitiram um sinal eletrônico imitando o som de uma “saída acústica da laringe humana”. O resultado? O som que saiu foi algo que lembra um sonoro“eh”, um simples gemido, mas que exageradamente alguns sugeriram que poderiam ser as palavras em inglês “bed” (cama) ou “bad” (mau). A múmia do sacerdote não “falou” como muitas mídias chegaram a veicular, tão pouco a “voz” que saiu não foi de um sacerdote morto há 3000 anos, foi um som artificial criado pela própria equipe. Escute o som:
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Alguns pesquisadores que não participaram da equipe e que foram consultados por veículos da imprensa também esclareceram que existem pontos preocupantes nesta pesquisa. Um deles é Daniel Bodony, especialista em aeroacústica da Universidade de Illinois, que explicou ao portal Post que a aproximação eletrônica da equipe “parece pequena” porque a múmia de Nesyamun não possui cordas vocais completas capazes de adicionar “riqueza e emoção” às palavras de alguém [3]. Outro é Rudolf Hagen, especialista em reconstrução do tórax, ouvido, nariz e garganta do Hospital Universitário de Wuerzburg, Alemanha. Ele expressou ceticismo explicando que até a medicina de ponta luta para dar às pessoas vivas sem tórax uma voz “normal” [4].
Então explicando algumas das falhas dessa pesquisa ponto a ponto:
- A equipe utilizou uma interpretação distorcida das práticas religiosas dos antigos egípcios para justificar sua pesquisa. E ainda falou que isso é uma justificativa ética. Distorcer as falas de uma cultura não é ético.
- A voz de alguém do passado não dará nenhuma informação sobre a cultura e nem mesmo sobre a linguagem da sociedade em que ele viveu.
- Qual o benefício real para a sociedade atual? Embora a Arqueologia trabalhe com o passado, as pesquisas têm como uma de suas principais intenções entender mais sobre a nossa identidade. Então saber como era a voz de um sacerdote morto há 3000 está mais para uma curiosidade mórbida, do que uma informação útil.
- Mesmo que os autores do artigo falem que escutar a voz de Nesyamun seja uma oportunidade de chamar as pessoas para museus, o que elas ouvirão não é a voz dele. É uma recriação eletrônica e artificial. Afirmar que é a voz real dele chega a ser irresponsável para com a sociedade.
Fontes:
[1] Synthesis of a Vocal Sound from the 3,000 year old Mummy, Nesyamun ‘True of Voice’. Disponível em < https://www.nature.com/articles/s41598-019-56316-y >. Acesso em 23 de janeiro de 2020.
[2] Voice of a 3,000-year-old Egyptian mummy reproduced by 3-D printing a vocal tract. Disponível em < https://edition.cnn.com/2020/01/23/world/egyptian-mummy-voice-from-the-dead-scn/index.html >. Acesso em 26 de janeiro de 2020.
[3] Listen to the Recreated Voice of a 3,000-Year-Old Egyptian Mummy. Disponível em < https://www.smithsonianmag.com/smart-news/listen-recreated-voice-3000-year-old-egyptian-mummy-180974048/ >. Acesso em 26 de janeiro de 2020.
Talk like an Egyptian: mummy’s voice heard 3,000 years after death. Disponível em < https://www.theguardian.com/science/2020/jan/23/talk-like-an-egyptian-mummys-voice-heard-3000-years-after-death >. Acesso em 23 de janeiro de 2020.
Scientists Recreate The Voice of a 3,000-Year-Old Egyptian Priest’s Mummy. Disponível em < https://www.sciencealert.com/egyptian-mummy-from-3-000-years-ago-finally-makes-its-voice-heard >. Acesso em 24 de janeiro de 2020.
[4] The mummy speaks: Ancient Egyptian priest’s voice recreated by scientists. Disponível em < https://www.cbc.ca/news/technology/mummy-voice-1.5438831 >. Acesso em 24 de janeiro de 2020.
Attempts to Reconstruct a Mummy’s Voice Are Cursed. Disponível em < https://hyperallergic.com/539573/attempts-to-reconstruct-a-mummys-voice-are-cursed/ >. Acesso em 27 de janeiro de 2020.